À BEIRA DO ABISMO (1946)
"The Big Sleep" parte de um
romance de Raymond Chandler e tem o argumento assinado por William Faulkner,
além de Jules Furthman e Leigh Brackett. O realizador é Howard Hawks, que o
dirigiu em 1946, dois anos depois de ter reunido pela primeira vez Humphrey
Bogart e Lauren Bacall em “Ter ou não Ter”. Reunião explosiva que haveria de
levar os dois actores a um casamento que duraria até à morte de Bogey, em 1957.
Raymond Chandler, juntamente com Dashiell Hammett, são os maiores escritores de
policiais deste período. Criando, entre outras personagens, dois detectives
privados inesquecíveis, que Bogart interpretou de forma magistral: Philip
Marlowe e Sam Spade. Ambos podem ser considerados os principais cultores do
romance negro norte-americano, abastecendo abundantemente o cinema com obras
que se tornariam clássicos deste género. No caso de Dashiell Hammett, “Relíquia
Macabra” ou “The Thin Man” são dois bons exemplos. Quanto a Philip Marlowe, “À
Beira do Abismo” e “A Dama do Lago” bastam para assegurar uma posição notória.
Howard Hawks não foi um realizador para se
manter fiel a um género, preferindo vogar livremente ao sabor da inspiração e
das encomendas de ocasião. Tinha o condão de transformar em obras de autor
todos (ou quase todos) os filmes que dirigia. Comédias, policiais, westerns,
ficção científica, dramas, filmes históricos contam-se na sua filmografia. “Ter
ou não Ter” e “À Beira do Abismo” bastaram para lhe criar um lugar essencial na
história do filme negro, ainda que não respeitasse integralmente as regras do
género, coisa que aliás nunca respeitou em nenhum outro. Uma das suas
características será mesmo essa indisponibilidade para respeitar regras. Raros
são os seus filmes onde as relações humanas são convencionais. Casais bem
casados quase não existem. Mas relações de amizade e camaradagem podem ver-se
amiúde, ainda que sempre observadas por um prisma de certa originalidade. Mas
violência, traições, hipocrisia, cinismo, um olhar distanciado sobre a
realidade, dado através de uma ironia fina e uma crítica mordaz são constantes.
As suas personagens gostam de acção, movimento, diálogos curtos, poucas
explicações, entrechos complexos, por vezes confusos, dando a impressão de que
o cineasta prefere aprofundar mais as figuras que as situações.
“À Beira do Abismo” é um excelente exemplo
desta prática. A intriga é particularmente intrincada e, mesmo depois de duas
ou três visões, o espectador ficará com dúvidas sobre o que aconteceu. Numa
entrevista dada alguns anos depois da conclusão de “The Big Sleep”, Howard
Hawks confessava que ainda não sabia quem teria assassinado um dos sete indivíduos
transformados em cadáveres que aparecem ao longo da obra. Julgamos que se
referia a um motorista que é dado como morto e de quem pouco mais se sabe. Não
interessa, também. O que importa neste filme, que quase ninguém hesita em
classificar como uma obra-prima, são realmente as personagens, entre elas a
estranha relação que se estabelece entre Philip Marlowe (Humphrey Bogart) e
Vivian Rutledge (Lauren Bacall), os diálogos, tensos, nervosos, irónicos,
cínicos, o clima denso, pesado, soturno que rodeia esta história viciosa e
violenta, bem como a arte da narração e a fotografia enevoada e cinzenta. De
resto, a ambiguidade é a certeza com que nos defrontamos ao longo da projecção.
Nunca se sabe bem quem é quem, o que o move, qual o passo seguinte.
Philip Marlowe, detective privado,
ex-polícia aposentado por não se dar bem com as regras do sistema, é convocado
pelo velho general Sternwood (Charles Waldron) para o visitar na sua mansão em
Los Angeles. Sternwood recebe-o numa estufa, com um calor sufocante, por entre
orquídeas e cobertores que o envolvem na sua cadeira de rodas. Sternwood está
doente, oferece uma bebida ao visitante, e bebe-a ele próprio com os olhos. Ele
vive através dos outros. O encontro é para contratar Marlowe para este tentar
resolver um caso de chantagem que tem como alvo a filha mais jovem do general,
Carmen Sternwood (Martha Vickers), uma (pouco mais que adolescente)
ninfomaníaca destrambelhada, perdida no jogo e na droga. Quando se apresta a
deixar a mansão, Marlowe é interpelado pela outra filha de Sternwood, Vivian,
que quer saber o que o pai tem em mente. Depois há um pouco de tudo,
bibliotecas e livrarias que o são, e outras que o são apenas na aparência,
casinos e jogo, ciladas e traições, casas isoladas onde acontecem estranhas
sessões fotográficas e ocorrem assassinatos, com o defunto a aparecer e
desaparecer, cenas de sedução e outras de violência verbal, Marlowe preso,
Marlowe solto, Marlowe à frente dos acontecimentos, Marlowe perseguindo os
acontecimentos e, sobretudo, Marlowe e Vivian a começar por se insultarem
insolentemente e acabarem nos braços um do, outro (para o que os argumentistas
e Howard Haws tiveram de alterar substancialmente o desfecho do romance de
Raymond Chandler).
De resto, o filme tem situações magníficas
de humor e invenção. Arthur Geiger, um dos suspeitos, possui uma livraria que
Marlowe vista. É recebido por Agnes Louzier (Sonia Darrin), a quem pergunta por
uma terceira edição de "Ben Hur", de 1860, com a errata na página
116, o que a empregada de Geiger desconhece, pois a livraria não é mais do que
máscara para negócios ilícitos. E vão surgindo o desaparecido Sean Regan, o
violento Joe Brody, o bem-apessoado Eddie Mars, que dirige o casino, e alguns
cadáveres a entremearem as situações.
Howard Hawks serve-se de um estilo nervoso,
sincopado, elíptico, numa narrativa enxuta, planos fixos, raros movimentos de
câmara, apenas os necessários para acompanhar personagens, que todavia conferem
uma ambiência sólida e inquietante, misteriosa e exaltante.
Curiosamente, Lauren Bacall não assina o
retrato de uma mulher fatal habitual, mas de alguém de uma sensualidade
furtiva, que se adivinha mais do que mostra (todo o contrário da oferecida
irmã, que se atira literalmente para o colo de quem está mais próximo). Esta
personagem, perante o distante e cínico Marlowe acaba por vivenciar momentos de
alta voltagem erótica, o que não será de estranhar dado que o casal
Bacall-Bogart vivia na vida real uma lua-de-mel de contagiante felicidade
Nota final: em 1978 surgiu uma nova versão
de "The Big Sleep" (O Sono Derradeiro, em português), dirigida por
Michael Winner, com Robert Mitchum, Sarah Miles, Richard Boone, entre outros.
Uma desilusão.
À BEIRA DO ABISMO
Título original: The Big Sleep
Realização: Howard Hawks (EUA,
1946); Argumento: William Faulkner, Leigh Brackett, Jules Furthman, segundo
romance de Raymond Chandler ("The Big Sleep"); Produção: Jack L.
Warner, Howard Hawks; Música: Max Steiner; Fotografia (p/b): Sidney Hickox;
Montagem: Christian Nyby; Direcção artística: Carl Jules Weyl,Max Parker;
Decoração: Fred M. MacLean; Maquilhagem: Perc Westmore; Direcção de Produção:
Eric Stacey; Assistentes de realização: Chuck Hansen, Robert Vreeland; Som:
Robert B. Lee; Efeitos especiais: Roy
Davidson, Warren Lynch; Efeitos visuais: Paul Detlefsen; Companhia de produção:
Warner Bros.-First National Pictures Inc.;
Intérpretes: Humphrey Bogart (Philip Marlowe), Lauren Bacall (Vivian
Rutledge), John Ridgely (Eddie Mars), Martha Vickers (Carmen Sternwood),
Dorothy Malone (empregada de livraria), Peggy Knudsen (Mona Mars), Regis Toomey
( Inspector Bernie Ohls), Charles Waldron (Gen. Sternwood), Charles D. Brown
(Norris), Bob Steele (Lash Canino), Elisha Cook Jr. (Harry Jones),
Louis Jean Heydt (Joe Brody), Trevor Bardette, Joy Barlow, Max Barwyn, Deannie
Best, Tanis Chandler, Jack Chefe, Joseph Crehan, Oliver Cross, Sonia Darrin,
Carole Douglas, Jay Eaton, etc. Duração: 114 minutos; Distribuição em Portugal: Warner
Bros.; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal:14 de
Janeiro de 1948.
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