O GRANDE CARNAVAL (1951)
Filmes abordando temas relacionados com o
jornalismo e a comunicação social são às centenas. Jornalistas íntegros que
defendem a comunidade há vários exemplos edificantes, desde os protagonistas de
“Os Homens do Presidente”, até o mais recente “O Caso Spotlight”. Jornalistas
corruptos também existem em muito bom número, bastando citar “A Queda de um
Corpo” ou “A Primeira Página”. Claro que entre uns e outros há um número
indeterminado de jornalistas a trabalharem mais ou menos em prol da comunidade
ou em proveito próprio ou das instituições de que dependem, o que mostra bem
que esta é uma profissão com um enorme significado e importância. “O Grande
Carnaval” do sempre brilhante Billy Wilder não é apenas mais um exemplo, é um
dos melhores filmes que alguma vez se realizou sobre os podres (e já agora
sobre a nobreza) de uma profissão.
Charles Tatum (Kirk Douglas) é jornalista,
atravessa um período de constante fracasso, sobretudo devido ao alcoolismo,
conforme ele próprio se desculpa, mas tudo leva a crer que o álcool é, além de
uma realidade, uma indulgência para outras falhas. Charles Tatum é sobretudo um
jornalista sem escrúpulos que, apesar de algum talento que lhe permitiu ir
sendo contratado por vários jornais de prestígio em cidades como Nova Iorque ou
Chicago, se encontra agora numa situação lamentável: atravessa Albuquerque, no
Novo México, num velho carro avariado, puxado por um reboque, sem dinheiro e
sem emprego. Mas com um empreendedorismo (dir-se-ia hoje!) e uma coragem sem
limites. Por isso entra pela redação dentro do jornal de Albuquerque, pede para
falar com o director, Jacob Q. Boot (Porter Hall) e, mais do que solicitar,
exige um emprego. Vai descendo a fasquia do ordenado semanal, até aceitar menos
do que aquilo que o director lhe oferece, 60 dólares e um lugar à condição.
Passam os dias e as notícias sem relevo
sucedem-se, para desespero do jornalista, mas uma manhã o director envia-o a
cobrir uma feira de serpentes. Pelo caminho, levando consigo Herbie Cook
(Robert Arthur), auxiliar e fotógrafo, descobre que numa velha mina numa
reserva de índios, se deu um desabamento que apanhou no seu interior Leo Minosa (Richard
Benedict), quando este pesquisava "relíquias indígenas" que lhe
dariam algum lucro na sua velha e desgastada gasolineira à beira de estrada. A
situação de Leo abre boas perspectivas a Charles Tatum, que fareja ali um furo
jornalístico. Abandona a ideia de rolar até às cascavéis e de decide ficar por
ali, com boas fotografias, algum drama, criação de suspense, puxar pelo
sentimentalismo, alimentar o voyeurismo das massas mais fáceis e
ingénuas e fazem crescer a tiragem do jornal para onde escreve, ao mesmo tempo
que acrescenta algo à sua cotação de jornalista.
Mas, para tudo correr de feição, é preciso
ser o único a ter acesso à mina dos índios e à sua mina de dólares. Para isso,
faz um contrato com o xerife (Ray Teal), que procura ganhar as próximas
eleições. É nomeado auxiliar de xerife e única pessoa com possibilidade de
conversar com Leo. Este lá se vai aguentando, com vários calhaus por cima do
corpo, oxigénio para o ajudar a respirar, alguns medicamentos e a glória de
aparecer na primeira do jornal da terra. Na gasolineira, os pais de Leo rezam e
fazem tudo o que podem para ajudar o filho e o grande amigo jornalista que Leo
conquistou. A mulher do acidentado, Lorraine Minosa (Jan Sterling), por seu
lado, não pensa senão em fugir daquele local maldito que não faz jus às suas
generosas curvas, oferece-se a Charles Tatum, mas este pensa primeiro na sua
devoção, e depois lá poderão vir os prazeres.
Quando se perspectiva a salvação de Leo
através das grutas, Tatum acha que “a situação pode ser perigosa” e que seria
muito mais eficaz escavar a montanha para tentar a salvação através desse
processo. Coisa para uma semana de trabalhos, o que, bem vistas as coisas,
seria uma semana de artigos no jornal e a possibilidade de ser chamado para
algum dos grandes de Nova Iorque, reconquistando posição e prestígio. Por isso,
nada melhor do que prolongar a feira que se instala diariamente à volta “do
grande acontecimento da terra”. Chegam forasteiros de todo o lado, instalam-se
com armas e bagagens, levam os filhos (“isto é muito pedagógico!”), os cantores
inventam baladas sobre a coragem de Leo, que vendem ao público, o circo
instala-se, os carroceis rodam, os turistas esgotam os mantimentos da
gasolineira, e a entrada na mina, que era grátis, passa a 20 cêntimos, 50, um
dólar. É o progresso de uma região, a ascensão de um jornalista, perante a ira
e a impotência dos camaradas de profissão que assistem, à porta. “Quando não há
notícias, inventam-se”, esta é a máxima de Tatum, que não hesitaria em “morder
o cão se necessário fosse”. Estamos no domínio da futurologia mais descabelada?
Não. Estamos no campo do real que se pode verificar um pouco por todo o lado.
Agora “a busca da verdade”, frase que o director do jornal de Albuquerque tem
estampada na parede do seu escritório chama-se “pós-verdade”. É assim uma
verdade que não é, mas que convinha a alguém que fosse.
Billy Wilder iria realizar uma outra obra
essencial sobre o mundo do jornalismo: “Primeira Página”. Com “O Grande
Carnaval” dirige um dos mais violentos e empolgantes libelos contra o mau
jornalismo, contra a corrupção, com a febre do dinheiro, contra o crime de
colarinhos (mais ou menos) brancos que se esconde por detrás de profissões
aparentemente muito respeitáveis. Onde obviamente existem homens íntegros e
honrados como o prova o velho director do jornal de Albuquerque.
Este “filme (muito) negro” parte de um
argumento de Walter Newman, Lesser Samuels e do próprio Billy Wilder, que
recebeu nomeação para o Oscar de Melhor Argumento. A interpretação é brilhante
por parte de Kirk Douglas, mas muito bem acompanhado pelo restante elenco,
donde se destaca ainda o tralho de Jan Sterling. Tanto a fotografia, como a
partitura musical, como a montagem e a direcção artística são de salientar
devidamente pela qualidade e a adequação ao projecto.
O filme triunfaria no Festival de Veneza.
Mas a reacção de alguma crítica na época da sua estreia achou o argumento algo
exagerado e demasiado cínico. 50 anos depois, outros críticos, acham-no
dramaticamente actual.
A história parece estar baseada em factos
reais. Um, acontecido no Kentucky em 1925, quando W. Floyd Collins ficou preso
numa cova que ele próprio havia cavado, e outro no caso de uma miúda, Kathy
Fiscus, que caiu a um poço em San Marino (Califórnia). Diga-se ainda, como
curiosidade, que até essa altura, este seria o maior cenário construído para um
filme não bélico. Na verdade, a vastidão do circo montado em redor da mina
índia é absolutamente invulgar, ainda a olhos de hoje, sabendo-se que na época
não existiam imagens digitais.
O GRANDE CARNAVAL
Título original: Ace in the Hole ou The Big Carnival
Realização: Billy Wilder (EUA, 1951);
Argumento: Billy Wilder, Lesser Samuels, Walter Newman, segundo história de
Victor Desny (não creditado); Produção: William Schorr, Billy Wilder; Música:
Hugo Friedhofer; Fotografia (p/b): Charles Lang; Montagem: Arthur P. Schmidt;
Casting: Bert McKay; Direcção artística:
A. Earl Hedrick, Hal Pereira; Decoração: Sam Comer, Ray Moyer; Guarda-roupa:
Edith Head; Maquilhagem: Wally Westmore, Hal Lierley; Direcção de Produção:
Richard Blaydon, Hugh Brown, Don Robb; Assistentes de realização: Charles C.
Coleman, Francisco Day, Al Mann, Jason Rosenberger; Departamento de arte:
Maurice Goodman, Cline Jones, Martin Pendleton, Tom Plews, Harold
Worthington; Som: Gene Garvin, Harold Lewis, Bob Carr, A.D.
Cook, John Cope; Efeitos visuais:
Farciot Edouart, Irmin Roberts; Companhia de produção: Paramount Pictures; Intérpretes: Kirk Douglas (Chuck
Tatum), Jan Sterling (Lorraine Minosa), Robert Arthur (Herbie Cook), Porter
Hall (Jacob Q. Boot), Frank Cady (Al Federber), Richard Benedict (Leo Minosa),
Ray Teal (xerife Gus Kretzer), Lewis Martin (McCardle), John Berkes (Papa
Minosa), Frances Dominguez (Mama Minosa), Gene Evans, Frank Jaquet, Harry
Harvey, Bob Bumpas, Geraldine Hall, Richard Gaines, Roy Regnier, Oscar Belinda,
Martin Bendleton, Timothy Carey, Basil Chester, Ken Christy, Stewart Kirk
Clawson, Iron Eyes Cody, Francisco Day, Lester Dorr, Claire Du Brey, Edith
Evanson, William Fawcett, John Stuart Fulton, Joe Gray, Charles Griffin, Larry
Hogan, Frank Keith, Bob Kortman, Martha Maryman, Stanley McKay, Joe J. Merrill,
Paul D. Merrill, Lee Miller, Ralph Moody, Bert Moorhouse, William H. O'Brien,
Frank Andrew Parker, Martin Pendleton, William N. Peters, Jack Roberts, Bill
Sheehan, Bert Stevens, John 'Bub' Sweeney, etc. Duração: 111 minutos; Distribuição em Portugal: inexistente;
Blu-Ray: Feel Filmes (Espanha); Inglês, com legendas em espanhol; Classificação
etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 15 de Janeiro de 1957.
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