domingo, 19 de fevereiro de 2017

O GRANDE CARNAVAL (1951)



O GRANDE CARNAVAL (1951)

Filmes abordando temas relacionados com o jornalismo e a comunicação social são às centenas. Jornalistas íntegros que defendem a comunidade há vários exemplos edificantes, desde os protagonistas de “Os Homens do Presidente”, até o mais recente “O Caso Spotlight”. Jornalistas corruptos também existem em muito bom número, bastando citar “A Queda de um Corpo” ou “A Primeira Página”. Claro que entre uns e outros há um número indeterminado de jornalistas a trabalharem mais ou menos em prol da comunidade ou em proveito próprio ou das instituições de que dependem, o que mostra bem que esta é uma profissão com um enorme significado e importância. “O Grande Carnaval” do sempre brilhante Billy Wilder não é apenas mais um exemplo, é um dos melhores filmes que alguma vez se realizou sobre os podres (e já agora sobre a nobreza) de uma profissão.
Charles Tatum (Kirk Douglas) é jornalista, atravessa um período de constante fracasso, sobretudo devido ao alcoolismo, conforme ele próprio se desculpa, mas tudo leva a crer que o álcool é, além de uma realidade, uma indulgência para outras falhas. Charles Tatum é sobretudo um jornalista sem escrúpulos que, apesar de algum talento que lhe permitiu ir sendo contratado por vários jornais de prestígio em cidades como Nova Iorque ou Chicago, se encontra agora numa situação lamentável: atravessa Albuquerque, no Novo México, num velho carro avariado, puxado por um reboque, sem dinheiro e sem emprego. Mas com um empreendedorismo (dir-se-ia hoje!) e uma coragem sem limites. Por isso entra pela redação dentro do jornal de Albuquerque, pede para falar com o director, Jacob Q. Boot (Porter Hall) e, mais do que solicitar, exige um emprego. Vai descendo a fasquia do ordenado semanal, até aceitar menos do que aquilo que o director lhe oferece, 60 dólares e um lugar à condição.


Passam os dias e as notícias sem relevo sucedem-se, para desespero do jornalista, mas uma manhã o director envia-o a cobrir uma feira de serpentes. Pelo caminho, levando consigo Herbie Cook (Robert Arthur), auxiliar e fotógrafo, descobre que numa velha mina numa reserva de índios, se deu um desabamento que apanhou no seu interior Leo Minosa (Richard Benedict), quando este pesquisava "relíquias indígenas" que lhe dariam algum lucro na sua velha e desgastada gasolineira à beira de estrada. A situação de Leo abre boas perspectivas a Charles Tatum, que fareja ali um furo jornalístico. Abandona a ideia de rolar até às cascavéis e de decide ficar por ali, com boas fotografias, algum drama, criação de suspense, puxar pelo sentimentalismo, alimentar o voyeurismo das massas mais fáceis e ingénuas e fazem crescer a tiragem do jornal para onde escreve, ao mesmo tempo que acrescenta algo à sua cotação de jornalista. 
Mas, para tudo correr de feição, é preciso ser o único a ter acesso à mina dos índios e à sua mina de dólares. Para isso, faz um contrato com o xerife (Ray Teal), que procura ganhar as próximas eleições. É nomeado auxiliar de xerife e única pessoa com possibilidade de conversar com Leo. Este lá se vai aguentando, com vários calhaus por cima do corpo, oxigénio para o ajudar a respirar, alguns medicamentos e a glória de aparecer na primeira do jornal da terra. Na gasolineira, os pais de Leo rezam e fazem tudo o que podem para ajudar o filho e o grande amigo jornalista que Leo conquistou. A mulher do acidentado, Lorraine Minosa (Jan Sterling), por seu lado, não pensa senão em fugir daquele local maldito que não faz jus às suas generosas curvas, oferece-se a Charles Tatum, mas este pensa primeiro na sua devoção, e depois lá poderão vir os prazeres.


Quando se perspectiva a salvação de Leo através das grutas, Tatum acha que “a situação pode ser perigosa” e que seria muito mais eficaz escavar a montanha para tentar a salvação através desse processo. Coisa para uma semana de trabalhos, o que, bem vistas as coisas, seria uma semana de artigos no jornal e a possibilidade de ser chamado para algum dos grandes de Nova Iorque, reconquistando posição e prestígio. Por isso, nada melhor do que prolongar a feira que se instala diariamente à volta “do grande acontecimento da terra”. Chegam forasteiros de todo o lado, instalam-se com armas e bagagens, levam os filhos (“isto é muito pedagógico!”), os cantores inventam baladas sobre a coragem de Leo, que vendem ao público, o circo instala-se, os carroceis rodam, os turistas esgotam os mantimentos da gasolineira, e a entrada na mina, que era grátis, passa a 20 cêntimos, 50, um dólar. É o progresso de uma região, a ascensão de um jornalista, perante a ira e a impotência dos camaradas de profissão que assistem, à porta. “Quando não há notícias, inventam-se”, esta é a máxima de Tatum, que não hesitaria em “morder o cão se necessário fosse”. Estamos no domínio da futurologia mais descabelada? Não. Estamos no campo do real que se pode verificar um pouco por todo o lado. Agora “a busca da verdade”, frase que o director do jornal de Albuquerque tem estampada na parede do seu escritório chama-se “pós-verdade”. É assim uma verdade que não é, mas que convinha a alguém que fosse.
Billy Wilder iria realizar uma outra obra essencial sobre o mundo do jornalismo: “Primeira Página”. Com “O Grande Carnaval” dirige um dos mais violentos e empolgantes libelos contra o mau jornalismo, contra a corrupção, com a febre do dinheiro, contra o crime de colarinhos (mais ou menos) brancos que se esconde por detrás de profissões aparentemente muito respeitáveis. Onde obviamente existem homens íntegros e honrados como o prova o velho director do jornal de Albuquerque.
Este “filme (muito) negro” parte de um argumento de Walter Newman, Lesser Samuels e do próprio Billy Wilder, que recebeu nomeação para o Oscar de Melhor Argumento. A interpretação é brilhante por parte de Kirk Douglas, mas muito bem acompanhado pelo restante elenco, donde se destaca ainda o tralho de Jan Sterling. Tanto a fotografia, como a partitura musical, como a montagem e a direcção artística são de salientar devidamente pela qualidade e a adequação ao projecto.
O filme triunfaria no Festival de Veneza. Mas a reacção de alguma crítica na época da sua estreia achou o argumento algo exagerado e demasiado cínico. 50 anos depois, outros críticos, acham-no dramaticamente actual. 
A história parece estar baseada em factos reais. Um, acontecido no Kentucky em 1925, quando W. Floyd Collins ficou preso numa cova que ele próprio havia cavado, e outro no caso de uma miúda, Kathy Fiscus, que caiu a um poço em San Marino (Califórnia). Diga-se ainda, como curiosidade, que até essa altura, este seria o maior cenário construído para um filme não bélico. Na verdade, a vastidão do circo montado em redor da mina índia é absolutamente invulgar, ainda a olhos de hoje, sabendo-se que na época não existiam imagens digitais.


O GRANDE CARNAVAL
Título original: Ace in the Hole ou The Big Carnival

Realização: Billy Wilder (EUA, 1951); Argumento: Billy Wilder, Lesser Samuels, Walter Newman, segundo história de Victor Desny (não creditado); Produção: William Schorr, Billy Wilder; Música: Hugo Friedhofer; Fotografia (p/b): Charles Lang; Montagem: Arthur P. Schmidt; Casting: Bert McKay;  Direcção artística: A. Earl Hedrick, Hal Pereira; Decoração: Sam Comer, Ray Moyer; Guarda-roupa: Edith Head; Maquilhagem: Wally Westmore, Hal Lierley; Direcção de Produção: Richard Blaydon, Hugh Brown, Don Robb; Assistentes de realização: Charles C. Coleman, Francisco Day, Al Mann, Jason Rosenberger; Departamento de arte: Maurice Goodman, Cline Jones, Martin Pendleton, Tom Plews, Harold Worthington;  Som:  Gene Garvin, Harold Lewis, Bob Carr, A.D. Cook, John Cope;  Efeitos visuais: Farciot Edouart, Irmin Roberts; Companhia de produção: Paramount Pictures; Intérpretes: Kirk Douglas (Chuck Tatum), Jan Sterling (Lorraine Minosa), Robert Arthur (Herbie Cook), Porter Hall (Jacob Q. Boot), Frank Cady (Al Federber), Richard Benedict (Leo Minosa), Ray Teal (xerife Gus Kretzer), Lewis Martin (McCardle), John Berkes (Papa Minosa), Frances Dominguez (Mama Minosa), Gene Evans, Frank Jaquet, Harry Harvey, Bob Bumpas, Geraldine Hall, Richard Gaines, Roy Regnier, Oscar Belinda, Martin Bendleton, Timothy Carey, Basil Chester, Ken Christy, Stewart Kirk Clawson, Iron Eyes Cody, Francisco Day, Lester Dorr, Claire Du Brey, Edith Evanson, William Fawcett, John Stuart Fulton, Joe Gray, Charles Griffin, Larry Hogan, Frank Keith, Bob Kortman, Martha Maryman, Stanley McKay, Joe J. Merrill, Paul D. Merrill, Lee Miller, Ralph Moody, Bert Moorhouse, William H. O'Brien, Frank Andrew Parker, Martin Pendleton, William N. Peters, Jack Roberts, Bill Sheehan, Bert Stevens, John 'Bub' Sweeney, etc. Duração: 111 minutos; Distribuição em Portugal: inexistente; Blu-Ray: Feel Filmes (Espanha); Inglês, com legendas em espanhol; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 15 de Janeiro de 1957.

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