quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

MORTALMENTE PERIGOSA (1950)



MORTALMENTE PERIGOSA (1950)

O “filme negro” distingue-se sobretudo por algumas características que passam de obra em obra. Se há filme onde muitas delas se cristalizam de forma clara e admirável, esse filme é “Deadly Is the Female”, como se chamou na sua estreia, ou “Gun Crazy”, como ficou conhecido internacionalmente. O seu realizador foi Joseph H. Lewis, um realizador de séries B, especializado em westerns e policiais ou “filmes negros” (para além de “Gun Crazy”, deu-nos ainda uma outra obra máxima do género “The Big Combo”, Rajada de Morte, 1955), homem que encontrou a sua auréola de culto entre os cinéfilos pela forma como conseguia extrair pepitas de ouro de orçamento mínimos. Isso mesmo acontece com “Mortalmente Perigosa”, filme rodado em 30 dias, com um orçamento de 400.000 dólares, e que rapidamente se transformou num dos mais perfeitos clássicos do “filme negro”.
Na verdade, o filme tem um pouco de tudo o que caracteriza este género, desde o pequeno orçamento até à filmagem a preto e branco, aqui assinada por um grande fotógrafo, talvez o único desvio permitido ao seu orçamento de série B: Russell Harlan, que era uma das maiores promessas de Hollywood por esta altura, tendo assinado posteriormente a fotografia de títulos como "Witness for the Prosecution", de Billy Wilder, e "To Kill a Mockingbird", de Robert Mulligan, “Blackboard Jungle”, de Richard Brooks, “Lust for Life”, de Vincente Minnelli, ou “Rio Bravo”, de Howard Hawks, entre outros. Russell Harlan foi uma enorme vantagem para o que Joseph H. Lewis conseguiu concretizar a nível plástico nesta sua obra.


Mas não foram só questões aparentemente marginais que estiveram na base deste “cult movie”. O seu argumento, partindo de uma história de MacKinlay Kantor, publicada em 1940 no “The Saturday Evening Post”, apareceu assinado por Millard Kaufman, afinal um testa-de-ferro para o conhecido argumentista e escritor Dalton Trumbo, por essa altura impedido de trabalhar em Hollywood por se encontrar incluído na lista negra dos suspeitos de pertencerem, ou terem tido ligações, ao Partido Comunista norte-americano. Refira-se que MacKinlay Kantor era autor de um romance, de 1946, “Glory for Me” que está na origem do magnífico filme de William Wyler “Os Melhores Anos da Nossa Vida” (The Best Years of Our Lives, 1946). O argumento de “Mortalmente Perigosa”, partindo de factos que se inspiraram obviamente na história verídica de Bonnie e Clyde, ocorrida alguns anos antes e amplamente documentada pela imprensa da época, permite muito curiosos prolongamentos.
Tentemos aflorar, ainda que sucintamente, alguns. A obra inicia-se com uma pequena sequência de Barton Tare adolescente (Russ Tamblyn muito jovem), à chuva, frente a uma montra de uma loja de armas. O arremesso de uma pedra, o vidro que se parte, o revolver e as balas que se roubam, a queda, a prisão, o tribunal. Alguns atestam o facto de Barton Tare ser um bom rapaz, afirma-o a irmã e dois amigos da mesma idade. Ele gosta de armas, mas é incapaz de fazer mal a uma mosca. Barton tem uma queda obsessiva para armas. Vai cumprir pena num reformatório, passa pelas forças armadas, regressa a casa, continua apaixonado pelas armas, mas não como profissão normalizada. Não nas forças armadas. 


Há feira na sua terra, ele e os amigos passeiam pelas barracas e vão dar a uma onde uma cowboy exercita os seus dotes de pontaria infalível e convida a assistência a fazer melhor. Instigado pelos amigos, Barton Tare (John Dall) aceita o repto. Annie Laurie Starr (Peggy Cummins), loura, provocante, de calças e colts, representa um desafio impossível de resistir. Apesar de ela ser a pequena do dono da barraca de feira, acabam por partir ambos rumo ao desconhecido. Mas Laurie não se satisfaz com pouco. Quer mais. Recusa-se a uma vida onde nem sequer podem comer hambúrguer com rodelas de cebola, para economizar 5 cêntimos. Por isso, incita Dave a um pequeno roubo, depois outro, e outro. Curiosamente é ela, a mulher de calças (o que lhe é notado pela gerente de um emprego onde trabalha), que comanda, que exige, que provoca, que impõe. Dave, que continua a recusar atingir pessoas, é um ser relativamente dócil, perante a força da natureza que se cola ao seu corpo e o seduz com o seu desejo. Esta é realmente uma história de “amour fou” daquelas de que falavam os surrealistas pela boca de Breton. Um amor louco que caminha para a destruição.
Mas há que referir aqui alguns aspectos muito curiosos: por um lado, Annie Laurie Starr é o protótipo da “femme fatale”, mulher endemoniada que se serve dos seus atrativos físicos, e não só, para seduzir Barton Tare até à perdição. Esta é, declaradamente, uma das mais lídimas representantes desta simbologia sexual. Mas, curiosamente, ela não é a sedução feminina, mas mostra-se um pouco como o elemento masculino. Já vimos o seu gosto por calças, o seu espirito de comando e os elementos fálicos que domina, os revólveres. É por esta mulher fisicamente sedutora enquanto mulher, mas masculinamente fascinante para Barton Tare, que o jovem deslumbrado pelas armas se deixa apaixonar. Esta ambiguidade de emoções e de comportamentos sexuais é uma das grandes características de muitos “filmes negros”. Mas, ao contrário de outras “femmes fatales”, Annie Laurie Starr não é um trofeu nas mãos de um marginal, não é um símbolo do poder que se conquista como se conquista a chefia de um gang. Ela é a condutora do processo e Barton Tare é o elemento seguidor.


De resto, não deixa de ser significativo que o realizador Joseph H. Lewis tenha escolhido para este papel o actor John Dalle, assumidamente homossexual e saído quase directamente de “A Corda”, de Alfred Hitchcock, onde interpretava a figura de um dos dois homossexuais que pretendem organizar um crime prefeito. Estas circunstâncias ainda adensam mais a ambiguidade das personagens e do seu relacionamento.
Há ainda a considerar o facto de este ser um filme totalmente visto pelo prisma dos fora-da-lei. A polícia aparece esporadicamente. Ainda por cima um dos elementos dessa polícia, o xerife da cidade natal de Barton, surge mais como amigo de infância deste do que como elemento das forças da ordem. E tudo se passa numa espécie de “huis clos” em que os dois foragidos se encerram num casulo de que não se conseguem libertar. Nesse particular, há uma cena absolutamente notável de um ponto de vista de realização, mas também de um ponto de vista simbólico. O assalto ao banco é todo ele rodado do interior de um carro, com Barton e Laurie filmados de costas, circulando pelas ruas de uma cidade, procurando um lugar para estacionar (nada estava previamente organizado nesse aspecto, tudo resulta espontâneo), parando o carro, saindo Barton para entrar no banco, ficando Laurie à espera dentro do carro, quando vê surgir um polícia, resolve sair e ir falar com ele, para assim o afastar da porta do banco, até regressar Barton e ambos se afastarem do local. Este “tour de force” narrativo, com a elisão do momento do roubo no interior do banco, dá bem a solidão do casal e, simultaneamente, demonstra a maestria da realização.
Falando da realização, não podemos deixar de acentuar o clima de forte prenúncio de tragédia que desde início se instala no espectador, mercê da forma como Joseph H. Lewis conduz o projecto, optando por uma narrativa depurada, uma ambiência insólita, criada pelos enquadramentos da imagem, pelo tratamento do preto e branco expressivo, pelo movimento dos actores, sobretudo em relação à colocação da câmara, tudo culminando na fabulosa sequência final, com o casal de foragidos escondido num pântano, com o nevoeiro matinal a encobrir toda a cena, ouvindo-se apenas as vozes fantasmagóricas dos perseguidores. Sequência assim concebida igualmente por falta de recursos para recrutar mais figurantes, deficiência que o talento do realizador transformou numa vantagem expressiva que torna este final antológico, relembrando algumas passagens desse fabuloso “O Malvado Zaroff” (The Most Dangerous Game, 1932), de Ernest B. Schoedsack e Irving Pichel.
Esta corrida contra o destino, de um casal perseguido pela fatalidade e o medo, intercalando o amor e a loucura, a cumplicidade e a traição, só pode terminar de forma trágica, mas ainda assim muito simbólica psicanaliticamente falando. Barton irá enfrentar um desafio decisivo, terá de optar entre os amigos de sempre e a mulher que tem a seu lado. Esta escolha é a derradeira imagem de um filme profundamente inquietante, que dá bem a imagem de uma época e de uma sociedade e que se projecta para outras épocas e outras sociedades, actualizando e universalizando a proposta. Um filme terrivelmente belo.


MORTALMENTE PERIGOSA
Título original: Deadly Is the Female ou Gun Crazy

Realização: Joseph H. Lewis (EUA, 1950); Argumento: MacKinlay Kantor, Dalton Trumbo (assinando como Millard Kaufman), segundo história de MacKinlay Kantor ("Gun Crazy"); Produção: Frank King, Maurice King; Música: Victor Young;  Fotografia (p/b): Russell Harlan; Montagem: Harry W. Gerstad; Design de produção: Gordon Wiles;  Decoração: Raymond Boltz Jr.; Guarda-roupa: Norma Koch;  Maquilhagem: Carla Hadley;  Direcção de Produção: Allen K. Wood; Assistente de realização: Frank Heath; Som: Tom Lambert; Companhia de produção: King Brothers Productions; Intérpretes: Peggy Cummins (Annie Laurie Starr), John Dall (Barton Tare), Berry Kroeger (Packett), Morris Carnovsky (Juiz Judge Willoughby), Anabel Shaw (Ruby Tare Flagler), Harry Lewis (Clyde Boston). Nedrick Young (Dave Allister), Trevor Bardette (xerife Boston), Mickey Little (Bart Tare, 7 anos), Russ Tamblyn (Bart Tare, 14 anos), Paul Frison (Clyde Boston, 14 anos), David Bair, Stanley Prager, Virginia Farmer, Anne O'Neal, Frances Irvin, Robert Osterloh, Shimen Ruskin, Harry Hayden, Tony Barr, Don Beddoe, Joseph Crehan, Eddie Dunn,  Dick Elliott, Ross Elliott, Franklyn Farnum, Pat Gleason, Arthur Hecht, George Lynn, William J. O'Brien, Jeffrey Sayre, Ray Teal, Dale Van Sicke, etc. Duração: 86 minutos; Distribuição em Portugal: Mon Inter Comerz, Classic Collection Film Noir (Espanha); Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 6 de Janeiro de 1953.

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