MORTALMENTE
PERIGOSA (1950)
O
“filme negro” distingue-se sobretudo por algumas características que passam de
obra em obra. Se há filme onde muitas delas se cristalizam de forma clara e
admirável, esse filme é “Deadly Is the Female”, como se chamou na sua estreia,
ou “Gun Crazy”, como ficou conhecido internacionalmente. O seu realizador foi
Joseph H. Lewis, um realizador de séries B, especializado em westerns e
policiais ou “filmes negros” (para além de “Gun Crazy”, deu-nos ainda uma outra
obra máxima do género “The Big Combo”, Rajada de Morte, 1955), homem que
encontrou a sua auréola de culto entre os cinéfilos pela forma como conseguia
extrair pepitas de ouro de orçamento mínimos. Isso mesmo acontece com
“Mortalmente Perigosa”, filme rodado em 30 dias, com um orçamento de 400.000
dólares, e que rapidamente se transformou num dos mais perfeitos clássicos do
“filme negro”.
Na
verdade, o filme tem um pouco de tudo o que caracteriza este género, desde o
pequeno orçamento até à filmagem a preto e branco, aqui assinada por um grande
fotógrafo, talvez o único desvio permitido ao seu orçamento de série B: Russell
Harlan, que era uma das maiores promessas de Hollywood por esta altura, tendo
assinado posteriormente a fotografia de títulos como "Witness for the
Prosecution", de Billy Wilder, e "To Kill a Mockingbird", de Robert
Mulligan, “Blackboard Jungle”, de Richard Brooks, “Lust for Life”, de Vincente
Minnelli, ou “Rio Bravo”, de Howard Hawks, entre outros. Russell Harlan foi uma
enorme vantagem para o que Joseph H. Lewis conseguiu concretizar a nível
plástico nesta sua obra.
Mas
não foram só questões aparentemente marginais que estiveram na base deste “cult
movie”. O seu argumento, partindo de uma história de MacKinlay Kantor,
publicada em 1940 no “The Saturday Evening Post”, apareceu assinado por Millard
Kaufman, afinal um testa-de-ferro para o conhecido argumentista e escritor
Dalton Trumbo, por essa altura impedido de trabalhar em Hollywood por se
encontrar incluído na lista negra dos suspeitos de pertencerem, ou terem tido
ligações, ao Partido Comunista norte-americano. Refira-se que MacKinlay Kantor
era autor de um romance, de 1946, “Glory for Me” que está na origem do
magnífico filme de William Wyler “Os Melhores Anos da Nossa Vida” (The Best
Years of Our Lives, 1946). O argumento de “Mortalmente Perigosa”, partindo de
factos que se inspiraram obviamente na história verídica de Bonnie e Clyde,
ocorrida alguns anos antes e amplamente documentada pela imprensa da época,
permite muito curiosos prolongamentos.
Tentemos
aflorar, ainda que sucintamente, alguns. A obra inicia-se com uma pequena
sequência de Barton Tare adolescente (Russ Tamblyn muito jovem), à chuva,
frente a uma montra de uma loja de armas. O arremesso de uma pedra, o vidro que
se parte, o revolver e as balas que se roubam, a queda, a prisão, o tribunal. Alguns
atestam o facto de Barton Tare ser um bom rapaz, afirma-o
a irmã e dois amigos da mesma idade. Ele gosta de armas, mas é incapaz de fazer
mal a uma mosca. Barton tem uma queda obsessiva para armas. Vai cumprir pena
num reformatório, passa pelas forças armadas, regressa a casa, continua
apaixonado pelas armas, mas não como profissão normalizada. Não nas forças
armadas.
Há
feira na sua terra, ele e os amigos passeiam pelas barracas e vão dar a uma
onde uma cowboy exercita os seus dotes de pontaria infalível e convida a
assistência a fazer melhor. Instigado pelos amigos, Barton Tare (John Dall)
aceita o repto. Annie Laurie Starr (Peggy Cummins), loura, provocante, de
calças e colts, representa um desafio impossível de resistir. Apesar de ela ser
a pequena do dono da barraca de feira, acabam por partir ambos rumo ao
desconhecido. Mas Laurie não se satisfaz com pouco. Quer mais. Recusa-se a uma
vida onde nem sequer podem comer hambúrguer com rodelas de cebola, para
economizar 5 cêntimos. Por isso, incita Dave a um pequeno roubo, depois outro,
e outro. Curiosamente é ela, a mulher de calças (o que lhe é notado pela
gerente de um emprego onde trabalha), que comanda, que exige, que provoca, que
impõe. Dave, que continua a recusar atingir pessoas, é um ser relativamente
dócil, perante a força da natureza que se cola ao seu corpo e o seduz com o seu
desejo. Esta é realmente uma história de “amour fou” daquelas de que falavam os
surrealistas pela boca de Breton. Um amor louco que caminha para a destruição.
Mas
há que referir aqui alguns aspectos muito curiosos: por um lado, Annie Laurie
Starr é o protótipo da “femme fatale”, mulher endemoniada que se serve dos seus
atrativos físicos, e não só, para seduzir Barton Tare até à perdição. Esta é,
declaradamente, uma das mais lídimas representantes desta simbologia sexual.
Mas, curiosamente, ela não é a sedução feminina, mas mostra-se um pouco como o
elemento masculino. Já vimos o seu gosto por calças, o seu espirito de comando
e os elementos fálicos que domina, os revólveres. É por esta mulher fisicamente
sedutora enquanto mulher, mas masculinamente fascinante para Barton Tare, que o
jovem deslumbrado pelas armas se deixa apaixonar. Esta ambiguidade de emoções e
de comportamentos sexuais é uma das grandes características de muitos “filmes
negros”. Mas, ao contrário de outras “femmes fatales”, Annie Laurie Starr não é
um trofeu nas mãos de um marginal, não é um símbolo do poder que se conquista
como se conquista a chefia de um gang. Ela é a condutora do processo e Barton
Tare é o elemento seguidor.
De
resto, não deixa de ser significativo que o realizador Joseph H. Lewis tenha
escolhido para este papel o actor John Dalle, assumidamente homossexual e saído
quase directamente de “A Corda”, de Alfred Hitchcock, onde interpretava a
figura de um dos dois homossexuais que pretendem organizar um crime prefeito.
Estas circunstâncias ainda adensam mais a ambiguidade das personagens e do seu
relacionamento.
Há
ainda a considerar o facto de este ser um filme totalmente visto pelo prisma
dos fora-da-lei. A polícia aparece esporadicamente. Ainda por cima um dos
elementos dessa polícia, o xerife da cidade natal de Barton, surge mais como
amigo de infância deste do que como elemento das forças da ordem. E tudo se
passa numa espécie de “huis clos” em que os dois foragidos se encerram num
casulo de que não se conseguem libertar. Nesse particular, há uma cena
absolutamente notável de um ponto de vista de realização, mas também de um
ponto de vista simbólico. O assalto ao banco é todo ele rodado do interior de
um carro, com Barton e Laurie filmados de costas, circulando pelas ruas de uma
cidade, procurando um lugar para estacionar (nada estava previamente organizado
nesse aspecto, tudo resulta espontâneo), parando o carro, saindo Barton para
entrar no banco, ficando Laurie à espera dentro do carro, quando vê surgir um
polícia, resolve sair e ir falar com ele, para assim o afastar da porta do
banco, até regressar Barton e ambos se afastarem do local. Este “tour de force”
narrativo, com a elisão do momento do roubo no interior do banco, dá bem a
solidão do casal e, simultaneamente, demonstra a maestria da realização.
Falando
da realização, não podemos deixar de acentuar o clima de forte prenúncio de
tragédia que desde início se instala no espectador, mercê da forma como Joseph
H. Lewis conduz o projecto, optando por uma narrativa depurada, uma ambiência
insólita, criada pelos enquadramentos da imagem, pelo tratamento do preto e
branco expressivo, pelo movimento dos actores, sobretudo em relação à colocação
da câmara, tudo culminando na fabulosa sequência final, com o casal de
foragidos escondido num pântano, com o nevoeiro matinal a encobrir toda a cena,
ouvindo-se apenas as vozes fantasmagóricas dos perseguidores. Sequência assim concebida
igualmente por falta de recursos para recrutar mais figurantes, deficiência que
o talento do realizador transformou numa vantagem expressiva que torna este
final antológico, relembrando algumas passagens desse fabuloso “O Malvado
Zaroff” (The Most Dangerous Game, 1932), de Ernest B. Schoedsack e Irving
Pichel.
Esta
corrida contra o destino, de um casal perseguido pela fatalidade e o medo, intercalando o
amor e a loucura, a cumplicidade e a traição, só pode terminar de forma
trágica, mas ainda assim muito simbólica psicanaliticamente falando. Barton irá
enfrentar um desafio decisivo, terá de optar entre os amigos de sempre e a
mulher que tem a seu lado. Esta escolha é a derradeira imagem de um filme
profundamente inquietante, que dá bem a imagem de uma época e de uma sociedade
e que se projecta para outras épocas e outras sociedades, actualizando e
universalizando a proposta. Um filme terrivelmente belo.
MORTALMENTE PERIGOSA
Título original: Deadly Is the
Female ou Gun Crazy
Realização: Joseph H. Lewis (EUA, 1950);
Argumento: MacKinlay Kantor, Dalton Trumbo (assinando como Millard Kaufman),
segundo história de MacKinlay Kantor ("Gun Crazy"); Produção: Frank
King, Maurice King; Música: Victor Young;
Fotografia (p/b): Russell Harlan; Montagem: Harry W. Gerstad; Design de
produção: Gordon Wiles; Decoração:
Raymond Boltz Jr.; Guarda-roupa: Norma Koch;
Maquilhagem: Carla Hadley;
Direcção de Produção: Allen K. Wood; Assistente de realização: Frank
Heath; Som: Tom Lambert; Companhia de produção: King Brothers Productions; Intérpretes: Peggy Cummins (Annie
Laurie Starr), John Dall (Barton Tare), Berry Kroeger (Packett), Morris
Carnovsky (Juiz Judge Willoughby), Anabel Shaw (Ruby Tare Flagler), Harry Lewis
(Clyde Boston). Nedrick Young (Dave Allister), Trevor Bardette (xerife
Boston), Mickey Little (Bart Tare, 7 anos), Russ Tamblyn (Bart Tare, 14 anos),
Paul Frison (Clyde Boston, 14 anos), David Bair, Stanley Prager, Virginia
Farmer, Anne O'Neal, Frances Irvin, Robert Osterloh, Shimen Ruskin, Harry
Hayden, Tony Barr, Don Beddoe, Joseph Crehan, Eddie Dunn, Dick Elliott, Ross Elliott, Franklyn Farnum,
Pat Gleason, Arthur Hecht, George Lynn, William J. O'Brien, Jeffrey Sayre, Ray
Teal, Dale Van Sicke, etc. Duração: 86 minutos; Distribuição em Portugal:
Mon Inter Comerz, Classic Collection Film Noir (Espanha); Classificação etária:
M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 6 de Janeiro de 1953.
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