domingo, 19 de fevereiro de 2017

LAURA (1944)


LAURA (1944)

Otto Preminger nasceu em Viena de Áustria, filho de um importante advogado que idealizou para ele uma mais que óbvia carreira de magistrado. Mas, desde muito miúdo que o que Otto Preminger queria era trabalhar no teatro e desde os 16 anos começou a pisar as tábuas do palco. No ano seguinte, estava já sob as ordens do prestigiado Max Reinhardt. Aos vinte anos, formado em advocacia, dirige uma companhia de comédia, mantendo a ligação com Reinhardt.
Estreia-se na realização em 1931, com 25 anos, mas interrompe a sua carreira na Áustria, porque começou a não gostar da proximidade de Hitler e das suas ideias. Partiu para a América, onde, em 1936, dirige o seu primeiro filme norte-americano, mas o director da Fox era então Zanuck e, sendo ambos autoritários e muito senhores do seu nariz, cedo surgem conflitos que o levam a partir para Nova Iorque. Aqui, fica-se pelo teatro, encena e interpreta várias obras, e é convidado para professor de encenação na Universidade de Yale. Volta então a Hollywood, para interpretar alguns filmes, entre os quais “Stalag 17”, de Billy Wilder, e arranca para uma segunda fase da sua carreira de cineasta. Em 1944, dirige “Laura”, que para o autor é o seu verdadeiro primeiro filme. Diga-se de passagem que "se iniciou" assim com uma obra-prima, a que se seguiram depois muitas outras obras admiráveis, como “Forever Amber”, “River of No Return”, “Bunny Lake is Missing”.
Mas a sua vasta filmografia permite curiosas análises. Primeiro que tudo, trata-se obviamente de um autor, um homem com uma obra extremamente coerente, mesmo quando num caso ou noutro se pode falar de falhanço. Para conseguir manter essa coerência consigo mesmo, torna-se produtor dos seus próprios filmes, o que na altura não era muito vulgar.


Apaixonado pelos grandes temas, muitas vezes retirados de "best sellers", abordou o racismo em “Carmen Jones”, “Porgy and Bess” ou “Harry Sundwon”; advogado, não esqueceu as salas de tribunais, e em “Conselho de Guerra” ou “Anatomia de um Crime” passeia-se por elas com uma desenvoltura notável; em “Exodus” aborda a questão judaica e a formação do estado de Israel; em “O Cardeal”, percorre os corredores e as manobras de bastidores do Vaticano; a solidão e o conflito de gerações estão presentes em “Bom Dia, Tristeza”; a guerra é a base de “A Primeira Vitória”, e com “Tempestade sobre Washington” entra no Senado norte-americano para o discutir com uma frescura e largueza de pontos de vista que tornariam a obra suspeita aos olhos da direita mais radical.
Senhor de um estilo inconfundível, que alguns acusam de ser frio e distante, mas apenas é rigoroso e discreto, Otto Preminger gostava de passear a sua câmara aos longo de notáveis planos sequência, que, dir-se-ia, iam montando o filme à medida que este se ia rodando, sem grande necessidade de muito corte e recorte na moviola. Quando apareceu o Cinemascope, nos anos 50, foi dos que melhor aproveitou as possibilidades plásticas deste novo formato, em filmes como “Rio sem Regresso”, “Carmen Jones” ou “Bunny Lake is Missing”. Mas foram os seus filmes dos anos 40 que o tornaram um mestre, muito embora a sua obra mais recente não seja de todo em todo negligenciável, como muitos procuram fazer crer. Mesmo em filmes como “Exodus”, “O Cardeal” ou “A Primeira Vitória”, Preminger assina sequências dignas do seu melhor.


Regressando a “Laura”, que parte de um argumento de Jay Dratler, Samuel Hoffenstein e Elizabeth Reinhardt, baseado no romance de 1943 de Vera Caspary, posso assegurar que este é um dos meus filmes predilectos da década de 40 americana, a história de uma obsessão, a de um inspector da polícia que vive fascinado pelo retrato de uma mulher belíssima, que ele julga morta. Mas, em Otto Preminger, as aparências iludem e quase todos os seus filmes nos levam a desconfiar das primeiras impressões. O que parece certo e seguro, não o é quase nunca.
O argumento denota algumas fragilidades e incoerências se analisado à lupa numa perspectiva estritamente racional. Mas esta não é uma obra “racional”, mas sim uma viagem por espíritos transtornados por grandes paixões. Em Manhattan, Nova Iorque, um detective, Mark McPherson (Dana Andrews), inicia a investigação de um crime. Aparentemente o corpo da bela e sedutora publicitária Laura Hunt (Gene Tierney) aparece à entrada da porta do seu apartamento, vítima de dois tiros desfechados à queima-roupa. Laura tinha à sua volta vários pretendentes, e possíveis suspeitos, entre os quais o colunista Waldo Lydecker (Clifton Webb), um dandy petulante e enfatuado que se tinha tornado protector da jovem, mas também um empertigado pelintra playboy que se afirma pintor e se anuncia noivo de Laura, Shelby Carpenter (Vincent Price). Outras personagens surgem ainda, como uma amiga misteriosa que disputa o amor de Shelby, Ann Treadwell (Judith Anderson), e também a traumatizada empregada da publicitária, Bessie Clary (Dorothy Adams).


Mark McPherson percorre os últimos dias de Laura, a sua correspondência e diário íntimo, instala-se em sua casa, onde olha demoradamente um belíssimo retrato da mulher dada como morta, e lentamente deixa-se possuir por essa presença-ausência. Tal como Waldo ou Shelby, Mark sente-se dominado pelo fascínio daquela mulher que inspira sentimentos profundos e ciúmes incontroláveis. Adormecido uma noite frente ao retrato de Laura, acorda com a presença real da retratada, que regressa de uns dias de férias passados numa casa de campo. O mistério avoluma-se, adensa-se, agora com o objecto das paixões bem presente entre detective e suspeitos.
O trabalho de "mise-en-scène" de Otto Preminger procura sobretudo penetrar a realidade, interrogá-la, desafiá-la. A câmara vagueia pelos espaços fechados e carregados e sombras e luzes (é curioso verificar o jogo que se estabelece na criteriosa utilização de ambas ao longo de todo o filme), envolvendo o espectador num soberbo exercício de estilo. É o que poderemos ver neste filme admirável, fabulosamente interpretado por uma Gene Tierney de sonho, muito bem secundada por Dana Andrews, Clifton Webb e Vincent Price.
Aparentemente, “Laura” é um policial, mais precisamente um “film noire”. Mas o talento do cineasta e da sua equipa transformam-no em algo de inclassificável: uma história de amor que continuamente nos foge, um filme de um romantismo envolvente, que um certo cinismo do olhar não deixa nunca resvalar para a facilidade; uma absorvente história de mistério... A brumosa fotografia de Joseph La Shelle e a música de David Raksin servem de forma magistral os propósitos de Preminger.
Curiosamente, este filme foi iniciado por Preminger ao nível do tratamento do argumento, e Darryl F. Zanuck indicou-o somente para produtor, dado que havia anteriormente jurado que Preminger nunca realizaria mais filmes para ele. Mas, depois de alguns dias de rodagem entregues a Rouben Mamoulian, este foi afastado do projecto que, entretanto, veio parar às mãos de Preminger. Tinha sido Marlene Dietrich a actriz inicialmente prevista para protagonista, mas por impossibilidade desta, haveria de ser Gene Tierney a encarnar a personagem que para sempre se lhe colaria à pele e lhe traria a glória.
Em 1999, “Laura” foi seleccionado para ser preservado no “United States National Film Registry”, organizado pela “Library of Congress”, em função da sua importância “cultural, histórica e estética”. Considerado pela escolha do “American Film Institute” como um dos melhores 100 “thrillers” de sempre, encontra-se igualmente no número 1 dos 100 melhores filmes de mistério de sempre.


LAURA
Título original: Laura

Realização: Otto Preminger, Rouben Mamoulian (este não creditado) (EUA, 1944); Argumento: Jay Dratler, Samuel Hoffenstein, Elizabeth Reinhardt, Ring Lardner Jr., segundo romance de Vera Caspary; Produção: Otto Preminger; Música: David Raksin; Fotografia (p/b): Joseph LaShelle, Lucien Ballard; Montagem: Louis R. Loeffle; Direcção artística: Leland Fuller, Lyle R. Wheeler; Decoração: Thomas Little; Guarda-roupa: Bonnie Cashin; Maquilhagem: Guy Pearce; Assistentes de realização: Tom Dudley, Robert Saunders; Departamento de arte: Paul S. Fox; Som: Harry M. Leonard, E. Clayton Ward; Efeitos especiais: Fred Sersen, Edwin Hammeras, Edward Snyder; Companhias de produção: Twentieth Century Fox Film Corporation; Intérpretes: Gene Tierney (Laura Hunt), Dana Andrews (Detective Mark McPherson), Clifton Webb (Waldo Lydecker), Vincent Price (Shelby Carpenter), Judith Anderson (Ann Treadwell), Grant Mitchell, Dorothy Adams, Lane Chandler, John Dexter, Ralph Dunn, Clyde Fillmore, James Flavin, William Forrest, Kathleen Howard, Frank LaRue, Thomas Martin, Jane Nigh, Harold Schlickenmayer, Larry Steers, Harry Strang, Cara Williams, etc. Duração: 88 minutos; Distribuição em Portugal (DVD) inexistente; DVD: Twenty Century Fox. Colecção Cinema Référence; Inglês com legendas em francês; Classificação etária: M/ 12 anos. Estreia em Portugal: 3 de Dezembro de 1945. 

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