quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

ALMAS PERVERSAS (1945)


ALMAS PERVERSAS (1945)

“Scarlet Street” pertence ao período em que Fritz Lang permaneceu em Hollywood, depois de ter emigrado da Alemanha, sob a ameaça do nacional-socialismo. Por isso se compreende que, apesar de datar de 1945, conserve muitas das características do Fritz Lang alemão, a começar desde logo pelo tema, que relembra os ambientes sórdidos e culposos de “Mabuse” ou “Matou”, para não falar de “O Anjo Azul” do seu companheiro de profissão e de exílio nos EUA, Josef Von Sternberg, onde até as personagens centrais se confundem: de um lado um circunspecto e puritano professor desencaminhado por uma cantora de cabaret que faz dele o palhaço do circo;  do outro, um honestíssimo e fiel contabilista que uma outra mulher fatal, desta feita uma dengosa jovem de vida fácil com sonhos de grandeza, o leva a cometer todas as vilanias em nome de uma paixão não correspondida. Mas há muito mais dessa tradição germânica, a que Fritz Lang não gosta de chamar expressionista, apesar de o ser: os enquadramentos, a iluminação, a escolha dos cenários, a preponderância das escadas, e tantos outros elementos. Há uma sequência, no interior de um hotel, com as luzes do néon exterior a repercutir-se no interior, que nos lança directamente nos filmes mais alemães do autor, onde muitas vezes as lâmpadas pendentes do tecto oscilam, introduzindo um clima de inquietação profunda e de nítida perturbação.


Em 1944, Lang tinha rodado “The Woman in The Window” (Suprema Decisão), com Edward G. Robinson, Joan Bennett e Dan Duryea, e o filme tinha funcionado muito bem. No ano seguinte, ele e os produtores procuraram reeditar o sucesso, com o mesmo elenco, uma história algo semelhante, onde se continuam a projectar as obsessões e fantasmas do autor, em “Scarlet Street” (Almas Perversas), mas agora com uma maior intencionalidade e um pessimismo mais acentuado. Enquanto, no filme anterior, Edward G. Robinson acordava no final de um mero pesadelo, em “Scarlet Street” o pesadelo vai até ao fim.
Christopher Cross (Edward G. Robinson), empregado de contabilidade de uma empresa, com trinta anos de leais serviços, é homenageado num jantar, durante o qual o patrão lhe oferta um belo relógio e os colegas o mimam de várias formas. Nas horas vagas, Chris pinta, quando a mulher, possessiva e prepotente, lho permite. Ele seria um homem feliz, se o amor o tocasse, um amor como aquele que ele espreita através da janela, quando o patrão sai mais cedo do jantar para entrar no carro onde uma bela e vaporosa loira o aguarda.
Uma noite, porém, quando vagueia sozinho pelas ruas mal iluminadas, assiste ao espancamento de uma bela loura. Sem pensar duas vezes, investe de guarda-chuva em punho e consegue salvar a rapariga do presumível assaltante. Ela chama-se Kitty March (Joan Bennett), espreguiça o seu doce fare niente na companhia de um gigolô violento, Johnny Prince (Dan Duryea), e ambos resolvem manipular o incauto e apaixonado sonhador, que tomam por um pintor de valiosa obra que pode render bons dólares no mercado de arte.


Começámos por afirmar: tudo é sórdido neste ambiente depressivo e criminoso, com excepção do ingénuo pintor naif, que o não é só nas suas telas. Ele será arrastado num turbilhão de emoções extremas, para as quais não estava preparado, e que o precipitará, de degrau em degrau, na mais completa ignominia. Mas, para tudo ser ainda mais perturbador, a justiça faz-se por portas travessas, num universo a rondar a loucura colectiva, o que é outro dos temas chaves da obra deste cineasta genial que transformava cada filme em que tocava numa obra de uma invulgar densidade e negrume.
As interpretações são brilhantes, sobretudo a de Edward G. Robinson, num dos mais conturbados papéis da sua carreira, a fotografia de Milton R. Krasner ajuda a criar o clima pretendido com enorme eficácia, a música de Hans J. Salter joga admiravelmente com a duplicidade do enquadramento emocional, entre a romantismo a que se suspira, e o trágico da existência. A canção “My Melancholy Baby” enquadra-se na perfeição nesta atmosfera pesada e dolorosamente nostálgica. O “filme negro”, que aparece na América certamente muito por influência dos cineastas alemães e austríacos que ali se recolhem como fugitivos de Hitler, tem aqui um dos seus momentos maiores.


ALMAS PERVERSAS
Título original: Scarlet Street

Realização: Fritz Lang (EUA, 1945); Argumento: Dudley Nichols, segundo romance e peça teatral de Georges de La Fouchardière e André Mouézy-Éon ("La Chienne"); Produção: Fritz Lang, Walter Wanger; Música: Hans J. Salter; Fotografia (p/b): Milton R. Krasner; Montagem: Arthur Hilton; Direcção artística: Alexander Golitzen; Decoração: Russell A. Gausman, Carl J. Lawrence; Guarda-roupa: Travis Banton; Maquilhagem: Carmen Dirigo, Jack P. Pierce; Assistentes de realização: Melville Shyer; Departamento de arte: John Decker; Som: Glenn E. Anderson, Bernard B. Brown; Efeitos visuais: John P. Fulton; Companhias de produção: A Fritz Lang Production, A Diana Production; Intérpretes: Edward G. Robinson (Christopher Cross), Joan Bennett (Katharine 'Kitty' March), Dan Duryea (Johnny Prince), Margaret Lindsay (Millie Ray), Rosalind Ivan (Adele Cross), Jess Barker (David Janeway), Charles Kemper, Anita Sharp-Bolster, Samuel S. Hinds, Vladimir Sokoloff, Arthur Loft, Russell Hicks, etc. Duração: 103 minutos; Distribuição em Portugal: Cine Digital (DVD); Classificação etária: M/ 12 anos. Estreia em Portugal: 6 de Março de 1947.

Sem comentários:

Enviar um comentário