ALMAS
PERVERSAS (1945)
“Scarlet Street” pertence ao
período em que Fritz Lang permaneceu em Hollywood, depois de ter emigrado da
Alemanha, sob a ameaça do nacional-socialismo. Por isso se compreende que,
apesar de datar de 1945, conserve muitas das características do Fritz Lang
alemão, a começar desde logo pelo tema, que relembra os ambientes sórdidos e
culposos de “Mabuse” ou “Matou”, para não falar de “O Anjo Azul” do seu
companheiro de profissão e de exílio nos EUA, Josef Von Sternberg, onde até as
personagens centrais se confundem: de um lado um circunspecto e puritano professor
desencaminhado por uma cantora de cabaret que faz dele o palhaço do circo; do outro, um honestíssimo e fiel contabilista
que uma outra mulher fatal, desta feita uma dengosa jovem de vida fácil com
sonhos de grandeza, o leva a cometer todas as vilanias em nome de uma paixão
não correspondida. Mas há muito mais dessa tradição germânica, a que Fritz Lang
não gosta de chamar expressionista, apesar de o ser: os enquadramentos, a
iluminação, a escolha dos cenários, a preponderância das escadas, e tantos outros
elementos. Há uma sequência, no interior de um hotel, com as luzes do néon
exterior a repercutir-se no interior, que nos lança directamente nos filmes
mais alemães do autor, onde muitas vezes as lâmpadas pendentes do tecto
oscilam, introduzindo um clima de inquietação profunda e de nítida perturbação.
Em 1944, Lang tinha rodado “The
Woman in The Window” (Suprema Decisão), com Edward G. Robinson, Joan Bennett e
Dan Duryea, e o filme tinha funcionado muito bem. No ano seguinte, ele e os
produtores procuraram reeditar o sucesso, com o mesmo elenco, uma história algo
semelhante, onde se continuam a projectar as obsessões e fantasmas do autor, em
“Scarlet Street” (Almas Perversas), mas agora com uma maior intencionalidade e
um pessimismo mais acentuado. Enquanto, no filme anterior, Edward G. Robinson
acordava no final de um mero pesadelo, em “Scarlet Street” o pesadelo vai até
ao fim.
Christopher Cross (Edward G.
Robinson), empregado de contabilidade de uma empresa, com trinta anos de leais
serviços, é homenageado num jantar, durante o qual o patrão lhe oferta um belo
relógio e os colegas o mimam de várias formas. Nas horas vagas, Chris pinta,
quando a mulher, possessiva e prepotente, lho permite. Ele seria um homem
feliz, se o amor o tocasse, um amor como aquele que ele espreita através da
janela, quando o patrão sai mais cedo do jantar para entrar no carro onde uma
bela e vaporosa loira o aguarda.
Uma noite, porém, quando vagueia
sozinho pelas ruas mal iluminadas, assiste ao espancamento de uma bela loura. Sem
pensar duas vezes, investe de guarda-chuva em punho e consegue salvar a
rapariga do presumível assaltante. Ela chama-se Kitty March (Joan Bennett),
espreguiça o seu doce fare niente na companhia de um gigolô violento, Johnny
Prince (Dan Duryea), e ambos resolvem manipular o incauto e apaixonado
sonhador, que tomam por um pintor de valiosa obra que pode render bons dólares
no mercado de arte.
Começámos por afirmar: tudo é
sórdido neste ambiente depressivo e criminoso, com excepção do ingénuo pintor
naif, que o não é só nas suas telas. Ele será arrastado num turbilhão de
emoções extremas, para as quais não estava preparado, e que o precipitará, de
degrau em degrau, na mais completa ignominia. Mas, para tudo ser ainda mais
perturbador, a justiça faz-se por portas travessas, num universo a rondar a
loucura colectiva, o que é outro dos temas chaves da obra deste cineasta genial
que transformava cada filme em que tocava numa obra de uma invulgar densidade e
negrume.
As interpretações são brilhantes,
sobretudo a de Edward G. Robinson, num dos mais conturbados papéis da sua
carreira, a fotografia de Milton R. Krasner ajuda a criar o clima pretendido
com enorme eficácia, a música de Hans J. Salter joga admiravelmente com a
duplicidade do enquadramento emocional, entre a romantismo a que se suspira, e
o trágico da existência. A canção “My Melancholy Baby” enquadra-se na perfeição
nesta atmosfera pesada e dolorosamente nostálgica. O “filme negro”, que aparece
na América certamente muito por influência dos cineastas alemães e austríacos
que ali se recolhem como fugitivos de Hitler, tem aqui um dos seus momentos
maiores.
ALMAS
PERVERSAS
Título
original: Scarlet Street
Realização: Fritz Lang (EUA, 1945);
Argumento: Dudley Nichols, segundo romance e peça teatral de Georges de La
Fouchardière e André Mouézy-Éon ("La Chienne"); Produção: Fritz Lang,
Walter Wanger; Música: Hans J. Salter; Fotografia (p/b): Milton R. Krasner;
Montagem: Arthur Hilton; Direcção artística: Alexander Golitzen; Decoração:
Russell A. Gausman, Carl J. Lawrence; Guarda-roupa: Travis Banton; Maquilhagem:
Carmen Dirigo, Jack P. Pierce; Assistentes de realização: Melville Shyer;
Departamento de arte: John Decker; Som: Glenn E. Anderson, Bernard B. Brown;
Efeitos visuais: John P. Fulton; Companhias de produção: A Fritz Lang
Production, A Diana Production; Intérpretes:
Edward G. Robinson (Christopher Cross), Joan Bennett (Katharine 'Kitty' March),
Dan Duryea (Johnny Prince), Margaret Lindsay (Millie Ray), Rosalind Ivan (Adele
Cross), Jess Barker (David Janeway), Charles Kemper, Anita Sharp-Bolster,
Samuel S. Hinds, Vladimir Sokoloff, Arthur Loft, Russell Hicks, etc. Duração: 103 minutos; Distribuição em
Portugal: Cine Digital (DVD); Classificação etária: M/ 12 anos. Estreia em
Portugal: 6 de Março de 1947.
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