domingo, 19 de fevereiro de 2017

UM ROUBO NO HIPÓDROMO (1956)


UM ROUBO NO HIPÓDROMO (1956)

A carreira de Kubrick no cinema inicia-se por um curioso e original conjunto de documentários, “Flying Padre”, “Day of the Fight” (ambos de 1951) e “The Seafarers” (1953) e duas longas-metragens de ficção, dois thrillers violentos, “Medo e Desejo” (Fear and Desire, 1953) e “O Beijo Assassino” (Killer's Kiss, 1955), um grupo de obras que deixava antever desde logo um autor extremamente inventivo e de grande impacto formal. Mas, o filme seguinte representa objectivamente um enorme salto qualitativo na filmografia de Kubrick. “Um Roubo no Hipódromo”, de um romance  de Lionel White (“Clean Break”), conta com argumento escrito pelo próprio Stanley Kubrick, de colaboração com Jim Thompson (sobretudo nos diálogos). Com um orçamento de 320.000, 260.000 da United Artists, os restantes 120.000 do produtor Harris, esta obra assinala a entrada de Kubrick nas “majors” de Hollywood. Trata-se de novo de um “thriller”, ou de um “filme negro”, de que a série B americana, entre as décadas de 30 e 50, está repleta de bons exemplos. Mas Kubrick irá imprimir-lhe uma respiração nova, sobretudo através de uma montagem complexa, onde as acções se desenvolvem em simultâneo, criando um “suspense” bem desenvolvido e sustentado.


Um grupo de ex-presidiários organiza um roubo num hipódromo, a efectuar durante uma das mais importantes corridas do dia, que irá deixar nas bilheteiras uma avultada quantia. O que parece ter interessado essencialmente ao autor é a forma como o roubo se processa, num autêntico mecanismo de relojoaria, com vários assaltantes espalhados por diferentes locais, funcionado de forma individual, mas concertada, fazendo depender cada acção da anterior e da seguinte, numa cadeia de comando único, previamente estudada até ao mais ínfimo pormenor e planificada de forma perfeita. Com elementos colocados criteriosamente em vários locais nevrálgicos, o assalto decorre sem incidentes de maior, para lá do nervosismo evidente e compreensível nesta corrida contrarrelógio. Serão incidências externas ao grupo que impedem o seu triunfo (nomeadamente o comportamento da mulher de um dos implicados, que, por cobiça e falta de integridade, desencadeia um tiroteio fatal, ou um cão que leva uma mala a cair quando esta se dirige já para o porão do avião que anuncia a liberdade). A mulher desempenha aqui um papel de desestabilizadora num universo de homens que são vítimas do seu comportamento, o que dá ao filme um tom de uma certa misógenia mais ou menos evidente noutras obras do mesmo cineasta.
O verdadeiro “tour de force” de Kubrick encontra-se, todavia, na descrição rápida mas incisiva e vigorosa de cada personagem, na sua inserção social e psicológica, e sobretudo na forma narrativa encontrada para justapor as acções que se desenrolam em simultâneo. A montagem não acompanha a vulgar montagem em paralelo, mas investe numa dinâmica diferente, com acções que se retomam umas às outras com tempos que se sobrepõem e se repetem em cenários diferentes, o que cria uma teia de situações complexas, permitindo o adensar de um “suspense” cada vez mais intenso e expectante (por aqui terá passado Christopher Nolan para idealizar o seu “Memento” que mantém com esta obra curiosas afinidades, levando ao limite extremo o processo iniciado por Kubrick).


Actores excelentes, magistralmente dirigidos, a utilização notável de uma voz off, de um narrador omnipresente, que vai ligando as peças deste puzzle labiríntico (um dos temas recorrentes em Kubrick), a iluminação sombreada deste “film noir” com enquadramentos plasticamente exaltantes são outras tantas achegas importantes para o crescente prestigio de um jovem cineasta em ascensão no interior da industria norte americana com propostas muito pessoais, mantidas à “outrance”. Tal como em “O Tesouro de Sierra Madre” ou “Quando a Cidade Dorme”, ambos de John Huston, o final de “Um Roubo no Hipódromo” é imprevisto e derrotante, deixando no espectador um gosto amargo sobre o destino que se abate sobre as personagens, homens desencantados e frios, que procuram um caminho pessoal perante uma sociedade inóspita e relações pessoais marcadas pela traição, onde a confiança não pode existir. O sucesso crítico, e também de público, deste pequeno filme de orçamento comedido, irá chamar a atenção de Hollywood para Kubrick.


UM ROUBO NO HIPÓDROMO 

Título original: The Killing
Realização: Stanley Kubrick (EUA, 1956); Argumento: Stanley Kubrick, Jim Thompson (diálogos), segundo romance de Lionel White (“Clean Break”); Música: Gerald Fried; Fotografia (p/b): Lucien Ballard; Montagem: Betty Steinberg; Direcção artística: Ruth Sobotka; Decoração: Harry Reif; Guarda Roupa: Beaumelle; Maquilhagem: Robert Littlefield, Lillian Shore;  Direcção de produção: Clarence Eurist; Assistentes de realização: Milton Carter, Paul Feiner, Howard Joslin; Departamento de Arte: Karl Brainard, Christopher Ebsen, Bud Pine, Robert L. Stephen, Ray Zambel, Som: Rex Lipton, Gilbert D. Marchant, Earl Snyder; Efeitos Especiais: Dave Koehler; Produção: James B. Harris, Alexander Singer; Intérpretes: Sterling Hayden (Johnny Clay), Coleen Gray (Fay), Vince Edwards (Val Cannon), Jay C. Flippen (Marvin Unger), Marie Windsor (Sherry Peatty), Ted de Corsia (Randy Kennan), Elisha Cook Jr. (George Peatty), Joe Sawyer (Mike O'Reilly), Jay Adler (Leo), Joe Turkel (Tiny), Timothy Carey (Nikki Arcane), Kola Kwariani (Maurice Oboukhoff), Tito Vuolo (Joe), Dorothy Adams (Ruthie O'Reilly), James Edwards, Herbert Ellis, James Griffith, Cecil Elliott, Steve Mitchell, Mary Carroll, William 'Billy' Benedict,  Charles Cane, Robert Williams, Art Gilmore, Sol Gorss, Richard Reeves, Frank Richards, etc. ; Duração: 85 minutos; Distribuição em Portugal: inexistente; DVD: MGM.UA (Espanha); Inglês com legendas em espanhl; Classificação etária: M/ 18 anos. 

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