domingo, 19 de fevereiro de 2017

SEM CONSCIÊNCIA (1951)


SEM CONSCIÊNCIA (1951)

“The Enforcer”, filme cuja realização foi iniciada por Bretaigne Windust que, entretanto, adoeceu, e terminada por Raoul Walsh, que não o pretendeu assinar, deixando o amigo ficar com os louros da obra, é um produto híbrido, enquanto thriller, que tanto pode, e deve, ser considerado um filme policial, como um filme negro, podendo ainda ser visto como um filme de gangsters, onde impera uma organização criminosa que é conhecida como “companhia”, que estabelece “contratos” tendo em vista um determinado “alvo”. Tudo fórmulas encriptadas para encobrir a verdadeira natureza desta actividade. A “companhia” é “contratada” para abater determinados “alvos” que alguém “encomenda”. A ideia inicial deste “negócio” é eliminar a suspeição sobre os que vivam perto da vítima e possam ter razões para a quererem eliminar. Sendo um perfeito desconhecido a executar o crime, deixando ao mandante a possibilidade de possuir um alibi sem mácula, mais difícil, senão impossível, se torna o trabalho da polícia. Claro que há sempre um mas, e neste caso existe uma testemunha que é urgente anular.
Mas é conveniente saber-se que este filme parte de um argumento escrito por Martin Rackin, que se foi basear em acontecimentos ocorridos entre os anos 20 e 40 e que ficaram conhecidos, nos anais da crónica policial americana, por "Murder, Inc." (pode traduzir-se como “Assassinos, SA"). Curiosamente, quem inicia a narração deste filme é Estes Kefauver que, na altura dos factos reais, tinha a presidência de uma investigação do Senado Americano sobre o chamado "crime organizado". Homem conhecedor do que falava.


Posto isto, apesar de grande parte dos exteriores terem sido filmados em vários locais de Los Angeles, o filme não define qual a cidade onde decorrem os acontecimentos. Estamos obviamente nos EUA, e o filme começa com uma carrinha prisional que transporta um preso para o edifício onde se encontram os serviços policiais e jurídicos adstritos ao tribunal, e onde o procurador Martin Ferguson (Humphrey Bogart) espera por Joseph Rico (Ted de Corsia), única e decisiva testemunha para o julgamento de Albert Mendoza (Everett Sloane), o cérebro da "Murder, Inc.". A tensão cresce à medida que as horas passam e que Joseph Rico se apavora perante a perspectiva de testemunhar em tribunal contra o seu antigo chefe. Ferguson e demais agentes da autoridade vão tentar o impossível, conservar com vida a testemunha e, à falta desta, descobrir onde se encontra uma outra, uma jovem que outrora assistira a um crime praticado por Mendoza. O que permite um final de filme verdadeiramente empolgante, com os homens de Mendoza por um lado, a polícia por outro, a tentarem localizar numa movimentada avenida a jovem Nina Lombardo (Susan Cabot). Uns pretendem calá-la para sempre, outros querem que ela deponha em tribunal.


Este é um filme muito especial por varias razões. Uma delas será certamente pelo fabuloso elenco de criminosos (e afins) que consegue reunir. Não são só magníficos secundários, daqueles que bastam dois ou três planos para se pressentir uma personagem, nalguns casos verdadeiramente neurótica. Mas igualmente pela qualidade do casting que escolhe rostos, corpos, movimentações inesquecíveis. De Ted de Corsia a Zero Mostel, passando por Everett Sloane, Michael Tolan, King Donovan, Bob Steele, Don Beddoe, Tito Vuolo, John Kellogg, e demais, todos eles são excepcionais como figuras que deixam rasto na recordação dos espectadores.  Ainda a nível de representação, diga-se que Bogart está brilhante, num papel que foi escrito à sua medida, ainda que inspirado na figura de um outro procurador, Burton Turkus, que chefiou alguns processos contra os membros da Murder, Inc. Chegou a escrever um livro que lançou quase em simultâneo com o filme. Também a personagem vivida por Ted de Corsia, Joe Rico, poderia ter sido decalcada de uma figura real, Abe Reles, uma testemunha importante encontrada morta depois de ter caído de uma janela de um hotel, o Half Moon Hotel, em Coney Island, em 12 de novembro de 1941. Nunca se chegou a estabelecer se essa morte terá sido um acidente, suicido ou assassinato. Houve quem assegurasse que tinham sido elementos da própria polícia a “empurrar” Abe para o precipício. Quanto à jovem Susan Cabot, que aqui aparece num dos seus primeiros trabalhos no cinema, seria depois muito aproveitada por Roger Corman nalguns dos seus filmes de pequeno orçamento que o tornariam uma lenda em Hollywood. Mas Susan é recordada pelas piores razões, depois de uma existência pejada de peripécias, a rondar a loucura, foi finalmente encontrada assassinada, com requintes de violência. O filho foi acusado e condenado pelo crime.
De resto, “Sem Consciência” é uma obra que tem a curiosidade de mostrar como funcionava por essa altura o crime organizado e como o mesmo foi combatido pelas autoridades. O filme, por vezes, adquire um tom documental, mas imprime um ritmo nervoso à narrativa, que passeia por ambientes sombrios, atravessada por personagens patológicas, oferecendo um retrato nada tranquilizador da sociedade norte-americana. A estrutura da progressão dramática, que alguns supõem inspirada na de “Citizen Kane”, de Orson Welles, funciona em função de vários flashbacks, alguns deles abrindo para outros, numa teia de relações interdependentes muito curiosa. O suspense é real, quase obsessivo para o final, que se sabe ter sido realizado por Raoul Walsh, e que impõe a sua eficácia de escrita e secura formal. Este é senão o primeiro, um dos primeiros exemplos de filme a documentar a actividade organizada do crime nos EUA.


SEM CONSCIÊNCIA
Título original: The Enforcer
Realização: Bretaigne Windust e Rauol Walsh (este não creditado) (EUA, 1951); Argumento: Martin Rackin; Produção: Milton Sperling; Música: David Buttolph; Fotografia (p/b): Robert Burks;  Montagem: Fred Allen;  Direcção artística: Charles H. Clarke;  Decoração: William L. Kuehl;  Maquilhagem: Vera Peterson; Assistentes de realização: Chuck Hansen; Som: Dolph Thomas; Companhias de produção: A United States Picture; Intérpretes: Humphrey Bogart (procurador Martin Ferguson), Zero Mostel (Big Babe Lazick), Ted de Corsia (Joseph Rico), Everett Sloane (Albert Mendoza), Roy Roberts (Capt. Frank Nelson), Michael Tolan (como Lawrence Tolan) (James (Duke) Malloy), King Donovan, Bob Steele, Adelaide Klein, Don Beddoe, Tito Vuolo, John Kellogg, Jack Lambert, Susan Cabot, Tom Dillon, Tim Graham, Greta Granstedt, Patricia Hayes, Patricia Joiner, Perc Launders, John Maxwell, etc. Duração: 87 minutos; Distribuição em Portugal: Cine Digital; 

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