SEM
CONSCIÊNCIA (1951)
“The Enforcer”, filme cuja realização
foi iniciada por Bretaigne
Windust que, entretanto, adoeceu, e terminada por Raoul Walsh, que não o
pretendeu assinar, deixando o amigo ficar com os louros da obra, é um produto
híbrido, enquanto thriller, que tanto pode, e deve, ser considerado um filme
policial, como um filme negro, podendo ainda ser visto como um filme de
gangsters, onde impera uma organização criminosa que é conhecida como
“companhia”, que estabelece “contratos” tendo em vista um determinado “alvo”.
Tudo fórmulas encriptadas para encobrir a verdadeira natureza desta actividade.
A “companhia” é “contratada” para abater determinados “alvos” que alguém
“encomenda”. A ideia inicial deste “negócio” é eliminar a suspeição sobre os
que vivam perto da vítima e possam ter razões para a quererem eliminar. Sendo
um perfeito desconhecido a executar o crime, deixando ao mandante a
possibilidade de possuir um alibi sem mácula, mais difícil, senão impossível,
se torna o trabalho da polícia. Claro que há sempre um mas, e neste caso existe
uma testemunha que é urgente anular.
Mas é conveniente saber-se que este filme
parte de um argumento escrito por Martin Rackin, que se foi basear em
acontecimentos ocorridos entre os anos 20 e 40 e que ficaram conhecidos, nos
anais da crónica policial americana, por "Murder, Inc." (pode
traduzir-se como “Assassinos, SA"). Curiosamente, quem inicia a narração
deste filme é Estes Kefauver que, na altura dos factos reais, tinha a
presidência de uma investigação do Senado Americano sobre o chamado "crime
organizado". Homem conhecedor do que falava.
Posto isto, apesar de grande parte dos
exteriores terem sido filmados em vários locais de Los Angeles, o filme não
define qual a cidade onde decorrem os acontecimentos. Estamos obviamente nos
EUA, e o filme começa com uma carrinha prisional que transporta um preso para o
edifício onde se encontram os serviços policiais e jurídicos adstritos ao
tribunal, e onde o procurador Martin Ferguson (Humphrey Bogart) espera por Joseph
Rico (Ted
de Corsia), única e decisiva testemunha para o julgamento de Albert Mendoza (Everett
Sloane), o cérebro da "Murder, Inc.". A tensão cresce à medida que as
horas passam e que Joseph Rico se apavora perante a perspectiva de testemunhar
em tribunal contra o seu antigo chefe. Ferguson e demais agentes da autoridade
vão tentar o impossível, conservar com vida a testemunha e, à falta desta,
descobrir onde se encontra uma outra, uma jovem que outrora assistira a um
crime praticado por Mendoza. O que permite um final de filme verdadeiramente
empolgante, com os homens de Mendoza por um lado, a polícia por outro, a
tentarem localizar numa movimentada avenida a jovem Nina Lombardo (Susan Cabot).
Uns pretendem calá-la para sempre, outros querem que ela deponha em tribunal.
Este é um filme muito especial por
varias razões. Uma delas será certamente pelo fabuloso elenco de criminosos (e
afins) que consegue reunir. Não são só magníficos secundários, daqueles que
bastam dois ou três planos para se pressentir uma personagem, nalguns casos
verdadeiramente neurótica. Mas igualmente pela qualidade do casting que escolhe
rostos, corpos, movimentações inesquecíveis. De Ted de Corsia a Zero Mostel,
passando por Everett Sloane, Michael Tolan, King Donovan, Bob Steele, Don
Beddoe, Tito Vuolo, John Kellogg, e demais, todos eles são excepcionais como
figuras que deixam rasto na recordação dos espectadores. Ainda a nível de representação, diga-se que
Bogart está brilhante, num papel que foi escrito à sua medida, ainda que
inspirado na figura de um outro procurador, Burton Turkus, que chefiou alguns
processos contra os membros da Murder, Inc. Chegou a escrever um livro que
lançou quase em simultâneo com o filme. Também a personagem vivida por Ted de
Corsia, Joe Rico, poderia ter sido decalcada de uma figura real, Abe Reles, uma
testemunha importante encontrada morta depois de ter caído de uma janela de um
hotel, o Half Moon Hotel, em Coney Island, em 12 de novembro de 1941. Nunca se
chegou a estabelecer se essa morte terá sido um acidente, suicido ou
assassinato. Houve quem assegurasse que tinham sido elementos da própria
polícia a “empurrar” Abe para o precipício. Quanto à jovem Susan Cabot, que
aqui aparece num dos seus primeiros trabalhos no cinema, seria depois muito
aproveitada por Roger Corman nalguns dos seus filmes de pequeno orçamento que o
tornariam uma lenda em Hollywood. Mas Susan é recordada pelas piores razões,
depois de uma existência pejada de peripécias, a rondar a loucura, foi
finalmente encontrada assassinada, com requintes de violência. O filho foi
acusado e condenado pelo crime.
De resto, “Sem Consciência” é uma obra
que tem a curiosidade de mostrar como funcionava por essa altura o crime
organizado e como o mesmo foi combatido pelas autoridades. O filme, por vezes,
adquire um tom documental, mas imprime um ritmo nervoso à narrativa, que
passeia por ambientes sombrios, atravessada por personagens patológicas,
oferecendo um retrato nada tranquilizador da sociedade norte-americana. A
estrutura da progressão dramática, que alguns supõem inspirada na de “Citizen
Kane”, de Orson Welles, funciona em função de vários flashbacks, alguns deles
abrindo para outros, numa teia de relações interdependentes muito curiosa. O
suspense é real, quase obsessivo para o final, que se sabe ter sido realizado
por Raoul Walsh, e que impõe a sua eficácia de escrita e secura formal. Este é
senão o primeiro, um dos primeiros exemplos de filme a documentar a actividade
organizada do crime nos EUA.
SEM
CONSCIÊNCIA
Título
original: The Enforcer
Realização: Bretaigne Windust e Rauol Walsh (este não
creditado) (EUA, 1951); Argumento: Martin Rackin; Produção: Milton Sperling;
Música: David Buttolph; Fotografia (p/b): Robert Burks; Montagem: Fred Allen; Direcção artística: Charles H. Clarke; Decoração: William L. Kuehl; Maquilhagem: Vera Peterson; Assistentes de
realização: Chuck Hansen; Som: Dolph Thomas; Companhias de produção: A United
States Picture; Intérpretes:
Humphrey Bogart (procurador Martin Ferguson), Zero Mostel (Big Babe Lazick),
Ted de Corsia (Joseph Rico), Everett Sloane (Albert Mendoza), Roy Roberts
(Capt. Frank Nelson), Michael Tolan (como Lawrence Tolan) (James (Duke)
Malloy), King Donovan, Bob Steele, Adelaide Klein, Don Beddoe, Tito Vuolo, John
Kellogg, Jack Lambert, Susan Cabot, Tom Dillon, Tim Graham, Greta Granstedt,
Patricia Hayes, Patricia Joiner, Perc Launders, John Maxwell, etc. Duração: 87 minutos; Distribuição em
Portugal: Cine Digital;
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