GILDA
(1946)
Charles Vidor não foi um cineasta
genial, mas teve os deuses a seu lado quando realizou “Gilda”, uma obra-prima
do “filme negro” que tornou Rita Hayworth um ícone, a mais perturbadora “mulher
fatal” do seu tempo, a “vamp” dos anos 40, a "love goddess" que para sempre
povoou de sonhos eróticos as plateias mundiais e os soldados americanos
regressados da frente da II Guerra Mundial.
Partindo de uma história de E.A.
Ellington, adaptada por Jo Eisinger, com argumento de Marion Parsonnet (e Ben
Hecht não creditado), “Gilda” é um filme particularmente complexo e mesmo
bastante perverso, sobretudo numa altura em que o Código de censura Hays estava
no seu auge e era impossível abordar temas como alguns que afloram de forma
muito insinuante nesta obra de uma envolvência sensual evidente.
Claro que a presença de Rita
Hayworth foi decisiva para o triunfo invulgar do filme, que sobrevive à
passagem dos anos sem uma ruga. Mas Rita Hayworth apareceu em dezenas e dezenas
de obras, sempre com notória presença e talento inegável, mas nunca atingiria
em nenhuma outra a mesma carga obsessiva. Pode também falar-se da faísca que
resultou do choque da sua personagem com a de Glenn Ford, mas a verdade é que
ambos tentaram depois reproduzir o efeito, com algum sucesso noutros filmes,
mas muito longe da vertigem aqui alcançada.
O enquadramento histórico do
filme é fácil de se estabelecer. Estamos em 1945 (um jornal anuncia: “A
Alemanha rende-se!”), a guerra acabou na Europa, os soldados americanos
regressaram à terra natal, e alguns altos dirigentes nazis evadidos da
Alemanha, escondem-se na América Latina. Johnny Farrell (Glenn Ford) é um
americano, jogador profissional de casino, perdido nessa tórrida América do
Sul. Uma noite, em Buenos Aires, é salvo de um espancamento por Ballin Mundson
(George Macready), que o contrata para seu braço direito no casino que dirige.
É conveniente acrescentar que Ballin Mundson possui uma bengala que esconde uma
lamina a que ele se refere como um amigo:” è o mais fiel e obediente amigo,
silencioso quando é para estar silêncios, fala quando deve falar”. Veremos mais
tarde que esta bengala bem pode funcionar como um símbolo fálico que substitui
a impotência ou/e a homossexualidade do seu possuidor. Johnny Farrell por seu
turno, tem por esta altura uma réplica igualmente sibilina: “um dólar é um
dólar em qualquer língua”. A boa oferta pecuniária para se associar a Ballin
sedu-lo e aceita a colaboração: “Não calcula como posso ser fiel e obediente
por um bom salário”. Um e outro acham que “jogo e mulheres não combinam” e
Farrell vai mais longe: “Nasci ontem à noite quando me encontrou. Sendo assim
não tenho passado mas tenho todo o futuro pela frente. O que me agrada”. Uma
promessa de amor? A ambiguidade das relações é cada vez mais forte e tudo se
complica quando, um dia, Ballin regressa de uma viagem ao estrangeiro casado
com Gilda (Rita Hayworth) que, pressente-se desde logo, havia sido no passado
bastante íntima de Johnny Farrell. Uma história de amor mal resolvida. Um
passado envolto em sombras que nunca se irá desvendar completamente mas que irá
persar sobre toda a obra. O equívoco da situação torna-se explosivo, quando
Gilda se mostra disposta a reaproximar-se de Johnny. Este afasta-se, coloca-a a
distância, mas o mal-estar está instalado e vai-se agravando, dado o
comportamento provocante de Gilda.
Jogo, desejo, vício,
perversidade, crimes de guerra, lavagem de dinheiro, traições, violência, tudo
isto passando-se ao mais alto nível da escala social, quando se tem o dinheiro
como bitola. Este é o ambiente por excelência do “filme negro”, onde o polícia
ou o detective particular quase nunca ocupam lugar destacado. Tudo se passa
“entre eles” e as autoridades apenas observam e se limitam a declarar os
óbitos. Ao contrário do “policial”, onde a investigação domina e o agente da
autoridade, pública ou privada, persegue o criminosos quase sempre até á
derradeira elucidação da trama. Por isso o “filme negro” merece tanto destaque
na história do cinema (tal como o “romance negro” na história da literatura)
pois através se assiste a uma boa imagem de alguns aspectos da sociedade
retratada. Nesse particular, “Gilda” é invulgarmente sintomática, poderá
dizer-se que de um período da história do século XX (o pós-guerra), mas cremos
mesmo que da condição humana.
Depois, por imposição do código
Hays, então a vigorar em toda a sua plenitude, a profunda carga psicológica e
sexual que transporta teve de ser trabalhada, consciente ou inconscientemente,
de forma metafórica e simbólica, criando curiosamente um clima de cortar à faca
que, se os factos fossem mais explícitos, possivelmente não atingiria. A
relação latente de homossexualidade entre Ballin Mundson e Johnny Farrell apen
as se encontra esboçada. A mais que provável “ménage à trois” que a segunda parte
da obra deixa entrever obedece a um mesmo critério. Mas há muito mais. O que
torna ainda mais fascinante esta obra é o que não é dito, o que fica elidido ou
apenas enunciado: quem são estas personagens? O que as unes e as separa? Donde vêm e que carga emocional transportam
consigo? O espectador é constantemente convidado a intervir, questionar,
colocar em causa o que vê. As aparências não são o que se vê. Há sempre algo
mais a densificar o clima. Quem é Gilda, para lá da provocação constante do seu
comportamento? O seu retrato de “mulher fatal”, que desinquieta qualquer tipo
de harmonia preexistente, a contínua ambiguidade da sua conduta carrega consigo
que herança? Uma imagem que roça a misoginia, mas que simultaneamente
transforma a mulher num mito de uma feminilidade avassaladora. A visão de
“Gilda” não deixa de ser perturbante para qualquer espectador, desde a sua
estreia até hoje. Ninguém fica indiferente à sua atmosfera obsessiva.
E, no entanto, este é ais um
filme que teve uma génese complexa e atribulada. O argumento foi escrito a
pensar na popularidade que nessa altura Rita Hayworth conhecia (ela era um dos
modelos - conhecidos por “pin-ups” - e das actrizes mais celebradas entre os
soldados norte-americanos. A Columbia Pictures pretendia explorar o seu sex
apeal e arrancou com a rodagem sem ter ainda um actor para contracenar com ela
e sem o argumento totalmente terminado (muitas vezes eram escritas algumas
páginas antes da rodagem do dia). Glenn Ford foi contratado por já ter
contracenado com a actriz e trabalhado com Charles Vidor, em “The Lady in
Question” (Acusada, Levante-se!), alguns anos antes (1940). Os resultados
tinham sido satisfatórios, mas nada fazia prever o impacto causado em “Gilda”.
Filmado dentro do tempo estipulado, terminada a rodagem os directores da
Columbia sentiram que faltava alguma coisa à obra. E “inventaram” dois números
musicais que ficariam para sempre como referências maiores na história do
cinema, “Amado Mio”, que introduzia uma tonalidade sul americana, e sobretudo o
espantoso “Put the Blame on Mame”, ambos encomendados à dupla Doris Fisher e
Alan Roberts, que as escreveu em tempo “record”. Depois surgiu um novo
problema: Rita Hayworth não sabia cantar e já havia sido dobrada noutros filmes
pela voz da cantora Nan Wynn, que não estava disponível. Foi então contratada
Anita Elklis que emprestou à canção uma envolvência sensual extraordinária,
sublinhada devidamente por Hayworth nesse espantoso “strip tease” sugerido por
duas imensas luvas pretas que se despem e deixam supor um mundo de sugestões
eróticas. Também a coreografia destes números musicais foi improvisada
rapidamente por Jack Cole, que trabalhara anteriormente com a actriz, por
exemplo em “Cover Girl” (Modelos), do mesmo Charles Vidor. E assim se chegou à
estreia de “Gilda”, terminado em Dezembro de 1945 e estreado a 25 de Abril de
1946, com enorme sucesso (arrecadou 3.75 milhões de dólares de receita e foi o
terceiro mais visto do ano). A partir daí Rita Hayworth nunca mais se desfez da
imagem de “Gilda” e ela culpou disso toda a sua atribulada vida sentimental
(declarou mesmo que “every man I knew had fallen in love with Gilda and wakened
with me” - “todos os homens que conheci se apaixonaram por Gilda, mas acordavam
comigo”). A publicidade tinha razão ao anunciar o filme com esta frase: “There
NEVER was a woman like Gilda” - “NUNCA houve uma mulher como Gilda”.
De resto, tudo no filme conduz a
essa atmosfera densa e pesada, com o preto e branco fabulosamente matizado de
Rudolph Mate, que retirou o melhor partida das cenas rodadas durante a noite e
em interiores.
GILDA
Título
original: Gilda
Realização: Charles Vidor (EUA, 1946);
Argumento: Jo Eisinger, Marion Parsonnet, (Ben Hecht), segundo história de E.A.
Ellington; Produção: Virginia Van Upp; Música: Hugo Friedhofer; Fotografia
(p/b): Rudolph Maté; Montagem: Charles Nelson; Direcção artística: Stephen
Goosson, Van Nest Polglase; Decoração: Robert Priestley; Guarda-roupa: Jean
Louis; Maquilhagem: Clay Campbell, Helen Hunt, Robert J. Schiffer; Assistentes
de realização: Arthur S. Black Jr., George Webster; Som: Lambert E. Day,
Russell Malmgren; Efeitos visuais: Lawrence W. Butler, Donald C. Glouner;
Companhias de produção: Columbia Pictures Corporation; Intérpretes: Rita Hayworth (Gilda Mundson Farrell), Glenn Ford
(Johnny Farrell / Narrador), George Macready (Ballin Mundson), Joseph Calleia
(Det. Maurice Obregon), Steven Geray (Tio Pio), Joe Sawyer
(Casey), Gerald Mohr (Capt. Delgado), Mark Roberts (Gabe Evans), Ludwig Donath,
Donald Douglas, etc. Duração: 110 minutos; Distribuição em
Portugal: Columbia/Tristar (DVD); Classificação etária: M/ 12 anos. Estreia em
Portugal: 27 de Março de 1948.
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