quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

GILDA (1946)


GILDA (1946)

Charles Vidor não foi um cineasta genial, mas teve os deuses a seu lado quando realizou “Gilda”, uma obra-prima do “filme negro” que tornou Rita Hayworth um ícone, a mais perturbadora “mulher fatal” do seu tempo, a “vamp” dos anos 40, a "love goddess" que para sempre povoou de sonhos eróticos as plateias mundiais e os soldados americanos regressados da frente da II Guerra Mundial.
Partindo de uma história de E.A. Ellington, adaptada por Jo Eisinger, com argumento de Marion Parsonnet (e Ben Hecht não creditado), “Gilda” é um filme particularmente complexo e mesmo bastante perverso, sobretudo numa altura em que o Código de censura Hays estava no seu auge e era impossível abordar temas como alguns que afloram de forma muito insinuante nesta obra de uma envolvência sensual evidente.
Claro que a presença de Rita Hayworth foi decisiva para o triunfo invulgar do filme, que sobrevive à passagem dos anos sem uma ruga. Mas Rita Hayworth apareceu em dezenas e dezenas de obras, sempre com notória presença e talento inegável, mas nunca atingiria em nenhuma outra a mesma carga obsessiva. Pode também falar-se da faísca que resultou do choque da sua personagem com a de Glenn Ford, mas a verdade é que ambos tentaram depois reproduzir o efeito, com algum sucesso noutros filmes, mas muito longe da vertigem aqui alcançada.


O enquadramento histórico do filme é fácil de se estabelecer. Estamos em 1945 (um jornal anuncia: “A Alemanha rende-se!”), a guerra acabou na Europa, os soldados americanos regressaram à terra natal, e alguns altos dirigentes nazis evadidos da Alemanha, escondem-se na América Latina. Johnny Farrell (Glenn Ford) é um americano, jogador profissional de casino, perdido nessa tórrida América do Sul. Uma noite, em Buenos Aires, é salvo de um espancamento por Ballin Mundson (George Macready), que o contrata para seu braço direito no casino que dirige. É conveniente acrescentar que Ballin Mundson possui uma bengala que esconde uma lamina a que ele se refere como um amigo:” è o mais fiel e obediente amigo, silencioso quando é para estar silêncios, fala quando deve falar”. Veremos mais tarde que esta bengala bem pode funcionar como um símbolo fálico que substitui a impotência ou/e a homossexualidade do seu possuidor. Johnny Farrell por seu turno, tem por esta altura uma réplica igualmente sibilina: “um dólar é um dólar em qualquer língua”. A boa oferta pecuniária para se associar a Ballin sedu-lo e aceita a colaboração: “Não calcula como posso ser fiel e obediente por um bom salário”. Um e outro acham que “jogo e mulheres não combinam” e Farrell vai mais longe: “Nasci ontem à noite quando me encontrou. Sendo assim não tenho passado mas tenho todo o futuro pela frente. O que me agrada”. Uma promessa de amor? A ambiguidade das relações é cada vez mais forte e tudo se complica quando, um dia, Ballin regressa de uma viagem ao estrangeiro casado com Gilda (Rita Hayworth) que, pressente-se desde logo, havia sido no passado bastante íntima de Johnny Farrell. Uma história de amor mal resolvida. Um passado envolto em sombras que nunca se irá desvendar completamente mas que irá persar sobre toda a obra. O equívoco da situação torna-se explosivo, quando Gilda se mostra disposta a reaproximar-se de Johnny. Este afasta-se, coloca-a a distância, mas o mal-estar está instalado e vai-se agravando, dado o comportamento provocante de Gilda.


Jogo, desejo, vício, perversidade, crimes de guerra, lavagem de dinheiro, traições, violência, tudo isto passando-se ao mais alto nível da escala social, quando se tem o dinheiro como bitola. Este é o ambiente por excelência do “filme negro”, onde o polícia ou o detective particular quase nunca ocupam lugar destacado. Tudo se passa “entre eles” e as autoridades apenas observam e se limitam a declarar os óbitos. Ao contrário do “policial”, onde a investigação domina e o agente da autoridade, pública ou privada, persegue o criminosos quase sempre até á derradeira elucidação da trama. Por isso o “filme negro” merece tanto destaque na história do cinema (tal como o “romance negro” na história da literatura) pois através se assiste a uma boa imagem de alguns aspectos da sociedade retratada. Nesse particular, “Gilda” é invulgarmente sintomática, poderá dizer-se que de um período da história do século XX (o pós-guerra), mas cremos mesmo que da condição humana.
Depois, por imposição do código Hays, então a vigorar em toda a sua plenitude, a profunda carga psicológica e sexual que transporta teve de ser trabalhada, consciente ou inconscientemente, de forma metafórica e simbólica, criando curiosamente um clima de cortar à faca que, se os factos fossem mais explícitos, possivelmente não atingiria. A relação latente de homossexualidade entre Ballin Mundson e Johnny Farrell apen as se encontra esboçada. A mais que provável “ménage à trois” que a segunda parte da obra deixa entrever obedece a um mesmo critério. Mas há muito mais. O que torna ainda mais fascinante esta obra é o que não é dito, o que fica elidido ou apenas enunciado: quem são estas personagens? O que as unes e as separa?  Donde vêm e que carga emocional transportam consigo? O espectador é constantemente convidado a intervir, questionar, colocar em causa o que vê. As aparências não são o que se vê. Há sempre algo mais a densificar o clima. Quem é Gilda, para lá da provocação constante do seu comportamento? O seu retrato de “mulher fatal”, que desinquieta qualquer tipo de harmonia preexistente, a contínua ambiguidade da sua conduta carrega consigo que herança? Uma imagem que roça a misoginia, mas que simultaneamente transforma a mulher num mito de uma feminilidade avassaladora. A visão de “Gilda” não deixa de ser perturbante para qualquer espectador, desde a sua estreia até hoje. Ninguém fica indiferente à sua atmosfera obsessiva.
E, no entanto, este é ais um filme que teve uma génese complexa e atribulada. O argumento foi escrito a pensar na popularidade que nessa altura Rita Hayworth conhecia (ela era um dos modelos - conhecidos por “pin-ups” - e das actrizes mais celebradas entre os soldados norte-americanos. A Columbia Pictures pretendia explorar o seu sex apeal e arrancou com a rodagem sem ter ainda um actor para contracenar com ela e sem o argumento totalmente terminado (muitas vezes eram escritas algumas páginas antes da rodagem do dia). Glenn Ford foi contratado por já ter contracenado com a actriz e trabalhado com Charles Vidor, em “The Lady in Question” (Acusada, Levante-se!), alguns anos antes (1940). Os resultados tinham sido satisfatórios, mas nada fazia prever o impacto causado em “Gilda”. 


Filmado dentro do tempo estipulado, terminada a rodagem os directores da Columbia sentiram que faltava alguma coisa à obra. E “inventaram” dois números musicais que ficariam para sempre como referências maiores na história do cinema, “Amado Mio”, que introduzia uma tonalidade sul americana, e sobretudo o espantoso “Put the Blame on Mame”, ambos encomendados à dupla Doris Fisher e Alan Roberts, que as escreveu em tempo “record”. Depois surgiu um novo problema: Rita Hayworth não sabia cantar e já havia sido dobrada noutros filmes pela voz da cantora Nan Wynn, que não estava disponível. Foi então contratada Anita Elklis que emprestou à canção uma envolvência sensual extraordinária, sublinhada devidamente por Hayworth nesse espantoso “strip tease” sugerido por duas imensas luvas pretas que se despem e deixam supor um mundo de sugestões eróticas. Também a coreografia destes números musicais foi improvisada rapidamente por Jack Cole, que trabalhara anteriormente com a actriz, por exemplo em “Cover Girl” (Modelos), do mesmo Charles Vidor. E assim se chegou à estreia de “Gilda”, terminado em Dezembro de 1945 e estreado a 25 de Abril de 1946, com enorme sucesso (arrecadou 3.75 milhões de dólares de receita e foi o terceiro mais visto do ano). A partir daí Rita Hayworth nunca mais se desfez da imagem de “Gilda” e ela culpou disso toda a sua atribulada vida sentimental (declarou mesmo que “every man I knew had fallen in love with Gilda and wakened with me” - “todos os homens que conheci se apaixonaram por Gilda, mas acordavam comigo”). A publicidade tinha razão ao anunciar o filme com esta frase: “There NEVER was a woman like Gilda” - “NUNCA houve uma mulher como Gilda”.
De resto, tudo no filme conduz a essa atmosfera densa e pesada, com o preto e branco fabulosamente matizado de Rudolph Mate, que retirou o melhor partida das cenas rodadas durante a noite e em interiores.


GILDA
Título original: Gilda

Realização: Charles Vidor (EUA, 1946); Argumento: Jo Eisinger, Marion Parsonnet, (Ben Hecht), segundo história de E.A. Ellington; Produção: Virginia Van Upp; Música: Hugo Friedhofer; Fotografia (p/b): Rudolph Maté; Montagem: Charles Nelson; Direcção artística: Stephen Goosson, Van Nest Polglase; Decoração: Robert Priestley; Guarda-roupa: Jean Louis; Maquilhagem: Clay Campbell, Helen Hunt, Robert J. Schiffer; Assistentes de realização: Arthur S. Black Jr., George Webster; Som: Lambert E. Day, Russell Malmgren; Efeitos visuais: Lawrence W. Butler, Donald C. Glouner; Companhias de produção: Columbia Pictures Corporation; Intérpretes: Rita Hayworth (Gilda Mundson Farrell), Glenn Ford (Johnny Farrell / Narrador), George Macready (Ballin Mundson), Joseph Calleia (Det. Maurice Obregon), Steven Geray (Tio Pio), Joe Sawyer (Casey), Gerald Mohr (Capt. Delgado), Mark Roberts (Gabe Evans), Ludwig Donath, Donald Douglas, etc. Duração: 110 minutos; Distribuição em Portugal: Columbia/Tristar (DVD); Classificação etária: M/ 12 anos. Estreia em Portugal: 27 de Março de 1948.

Sem comentários:

Enviar um comentário