quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

ALMAS EM SUPLICIO (1945)


ALMA EM SUPLÍCIO (1945)

"Mildred Pierce" é outro romance negro do escritor James M. Cain (“O Carteiro Toca Sempre Duas Vezes” ou “Pagos a Dobrar”, entre outros), desta feita adaptado ao cinema por Ranald MacDougall, que teve a colaboração ainda (não creditada no genérico) de William Faulkner, Margaret Gruen, Albert Maltz, Louise Randall Pierson, Catherine Turney, Margaret Buell Wilder e Thames Williamson. A realização esteve entregue a Michael Curtiz, que três anos antes tinha assinado “Casablanca”. Este húngaro, naturalizado norte-americano, é um cineasta que assinou várias obras-primas, mas que permanece não muito valorizado por certa crítica que não vê nele um “autor”. Um filme como "Mildred Pierce" é mais um bom atestado do seu talento, sensibilidade e, inclusive, uma demonstração de algumas constantes autorais que mereceriam um estudo mais alargado. Trata-se seguramente de uma obra-prima que fica devendo muito ao seu argumento, aos seus técnicos principais, ao seu elenco, em particular a Joan Crawford, mas certamente mais ainda ao realizador que reuniu as peças e as conjugou de forma notável. Comecemos, pois, por sublinhar a excelência da realização, sobretudo na criação de ambientes, onde Curtiz é mestre. A utilização da iluminação, criando zonas de luz e sombra é magnifica e ajuda habilmente a definir dramaticamente certas situações, impondo um clima de mistério e por vezes de certa perversidade.
O romance de James M. Cain é fértil em peripécias, mas revela-se algo diferente da adaptação que dele foi feita para cinema. Passa-se em Glendale, na Califórnia, durante a década de 1930, um período difícil, marcado pela Grande Depressão. Mas o estrato social afasta-se claramente dos pobres de “As Vinhas da Ira”, por exemplo, e localiza-se numa classe média com problemas, mas relativamente desafogada. Mildred Pierce, a protagonista, descobre-se sozinha, com duas filhas para educar (uma das quais acaba por falecer), depois do seu divórcio. Encontra trabalho como empregada de mesa num restaurante, mas a filha, Veda, não lhe perdoa a queda social. Ambiciosa e snob, Veda é uma menina mimada que exige sempre mais da mãe. Esta assume a direcção de um restaurante de sucesso, multiplica o negócio, dispõe já de desenvoltura económica, arranja um “boyfriend”, Monty, com quem casa, mas a sorte deslaça quando descobre que a filha a chantageia com uma falsa gravidez e Monty delapida a sua fortuna, com contabilidade enganosa. Para mais, descobre ainda Veda e Monty na mesma cama, o que destabiliza por completo a família. Mildred muda-se para Reno, Nevada, afasta-se da filha, mas os problemas regressam mais tarde.


O romance não contém nenhum crime, mas, ao ser transposto para cinema, o “Motion Picture Production Code”, a impiedosa censura da altura, fez constar que existiam 11 temas tabus em filmes produzidos pelos membros associados, e mais 25 outros assuntos que deveriam merecer especial atenção. O que tornava impossível a adaptação do romance, sobretudo por questões sexuais, e levou os argumentistas a imaginar um crime, com que abre o filme, passando toda a narrativa subsequente a ser conduzida por Mildred Pierce (Joan Crawford) que surge como a principal suspeita da morte de Monte Beragon (Zachary Scott), sendo investigada pela polícia, que não deixa nunca de tomar em consideração ainda a conduta de Veda Pierce (Ann Blyth). Como obra de mistério e suspense, não se pode adiantar mais em descrições sem quebrar o segredo, pelo que por aqui nos quedamos, sublinhando mais uma vez a solidez da narrativa, que instala a ansiedade e mobiliza as emoções dos espectadores de forma notável, através da excelência da realização, da belíssima fotografia a preto e branco de Ernest Haller, onde nunca será demais apontar a brilhante iluminação, com as sombras projectadas nas paredes, o que liga imediatamente este título a outros de Curtiz, como o próprio “Casablanca”, e ainda a magnifica música de Max Steiner, como sempre um inspirado compositor que soube servir admiravelmente os filmes a que ligou o seu nome.
“Mildred Pierce” foi nomeado para seis Oscars, entre os quais o de Melhor Filme, Melhor Argumento, Melhor Fotografia a preto e banco, Melhor Actriz Secundária (duas nomeações, Ann Blyth e Eve Arden) e Melhor Actriz (Joan Crawford), única nomeação transformada em estatueta, o que permitiu à actriz relançar uma carreira que por essa altura não andava muito bem. Mas Crawford tem efectivamente um trabalho notável, com discretas mudanças de registo, mantendo o filme entre o melodrama e o filme negro, com uma incrível subtileza. Crawford ainda nos viria a dar algumas outras contribuições de altíssima qualidade, como o seu desempenho em “Johnny Guitar”, talvez o seu papel mais recordado.
Nota: em 2010, o realizador Todd Haynes rodou “Mildred Pierce”, uma mini-série em cinco partes, para a HBO, com Kate Winslet como Mildred, Guy Pearce como Monty Beragon, e Evan Rachel Wood como Veda. Esta nova adaptação do romance de James M. Cain é muito mais fiel à obra literária (mudaram os tempos, e desapareceu o Código Hays) e consegue ser igualmente um título muito interessante.


ALMA EM SUPLÍCIO
Título original: Mildred Pierce

Realização: Michael Curtiz (EUA, 1945); Argumento: Ranald MacDougall, e ainda (não creditados) William Faulkner, Margaret Gruen, Albert Maltz, Louise Randall Pierson, Catherine Turney, Margaret Buell Wilder, Thames Williamson, segundo romance de James M. Cain ("Mildred Pierce"); Produção: Jerry Wald, Jack L. Warner; Música: Max Steiner; Fotografia (p/b): Ernest Haller; Montagem: David Weisbart; Direcção artística: Anton Grot, Bertram Tuttle; Decoração: George James Hopkins; Guarda-roupa: Milo Anderson, Clayton Brackett, Joan Crawford, Jeanette Storck; Maquilhagem: Perc Westmore, Edwin Allen, Geraldine Cole, Bill Cooley; Direcção de Produção: Louis Baum; Assistentes de realização: Frank Heath, Dick Moder; Departamento de arte: Herbert Plews, Levi C. Williams;  Som: Oliver S. Garretson, Gerald W. Alexander, Robert G. Wayne; Efeitos especiais: Willard Van Enger, Harry Barndollar; Efeitos visuais: Russell Collings, Paul Detlefsen, Mario Larrinaga; Companhia de produção: Warner Bros.-First National Pictures; Intérpretes: Joan Crawford (Mildred Pierce), Jack Carson (Wally Fay), Zachary Scott (Monte Beragon), Eve Arden (Ida Corwin), Ann Blyth (Veda Pierce), Bruce Bennett (Bert Pierce), Lee Patrick (Mrs. Maggie Biederhof), Moroni Olsen (Inspector Peterson), Veda Ann Borg (Miriam Ellis), Jo Ann Marlowe (Kay Pierce), William Alcorn, Betty Alexander, Ramsay Ames, George Anderson, Robert Arthur, Lynn Baggett, Leah Baird, Dorothy Barrett, Barbara Brown, Wheaton Chambers, John Christian, Wallis Clark, Chester Clute, John Compton, David Cota, James Flavin, Bess Flowers, Manart Kippen, Robert Loraine, Jean Lorraine, Butterfly McQueen, Jack O'Connor, George Tobias, Charles Trowbridge, Joan Wardley, Joan Winfield, etc. Duração: 111 minutos; Distribuição em Portugal: Sociedade Importadora de Filmes (SIF), Suevia Films (DVD); Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 2 de Dezembro de 1946.

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