PAGOS A DOBRAR (1944)
“Double
Indemnity” pode traduzir-se por “dupla indemnização”, numa terminologia ligada
a companhias de seguros. É o que se passa nesta obra retirada de um romance
negro de James M. Cain (o mesmo de “O Carteiro Toca Sempre Duas Vezes”, com o
qual a intriga deste “Pagos a Dobrar” tem muitos pontos de contacto), adaptado
a cinema por um outro grande autor do policial negro, Raymond Chandler,
argumento que contém ainda uma boa garfada do próprio Billy Wilder. Tal como em
“O Carteiro Toca Sempre Duas Vezes”, o que aqui está em causa é a intenção de
uma mulher (uma verdadeira “femme fatal” com uma ambição desmedida) em matar o
marido para ficar com o seguro, enrolando no esquema um empregado de uma
agência de seguros que se deixa prender de amores pela megera de falinhas
mansas.
Há uma
história curiosa de rivalidade entre produtores acerca desse filme: em 1944,
David O. Selznick estreou com grande sucesso “Desde Que Tu Partiste”, e a
campanha publicitária falava de "'Since You Went Away' como “as quatro
mais importantes palavras no cinema desde 'Gone With the Wind'!", que
também tinha sido produzido por Selznick. Billy Wilder não gostou da graça (o
seu filme era do mesmo ano de 1944) e resolveu contra-atacar: "'Double
Indemnity' são “as duas mais importantes palavras no cinema desde 'Broken
Blossoms'!", referindo-se desta feita à obra prima de 1919 de D.W. Griffith. Selznick também não achou
graça ao remoque e interpôs uma acção em tribunal por considerar ilegal este
tipo de contra-publicidade. Mas há mais:
Alfred Hitchcock, que tinha contas a ajustar com Selznick, acrescentou:
"The two most important words in movies today are 'Billy Wilder'!"
E sim,
Billy Wilder é um dos nomes mais representativos do cinema norte-americano
entre os anos 40 e os anos 70. São dele algumas das pérolas daquela
cinematografia, ele que nasceu austríaco, em 1906, numa aldeia que hoje é
polaca (Sucha), para no início da década de 30 emigrar para a América, onde
concretiza quase toda a sua filmografia como realizador. Antes, porém, na
Alemanha, já adquirira prestígio como argumentista, depois de ter passado pela
carreira de jornalista. Billy Wilder deu ao cinema títulos como “The Lost
Weekend”, “Sunset Boulevard”, “The Big Carnival”, “Stalag 17”, “Same Like it
Hot”, “The Apartment”, “The Front Page”, entre muitos outros igualmente
meritórios, mas em 1944 afirmava-se já como um génio ao dirigir “Double
Indemnity”, que ele disse não ter realizado a pensar que era um “filme negro”,
mas que se afirma como um dos seus mais lídimos representantes.
Na verdade,
“Pagos a Dobrar” tem todas as características deste género, quer pelas
situações, personagens, móbil do crime, mas sobretudo pela ambiência sombria e
malsã em que decorre a acção, que liberta alguns dos piores sintomas de uma
sociedade doente, obcecada pelo dinheiro, viciada pela ganância, corrupta e
inebriada pelo sucesso fácil. Tudo isto são características que se adaptam bem
à personagem principal, Phyllis Dietrichson (Barbara Stanwyck), que engendra
todo o plano para matar o marido, depois de este ter assinado um chorudo seguro
de vida que lhe foi proposto ardilosamente por Walter Neff (Fred MacMurray),
com quem a viperina Phyllis Dietrichson mantinha um caso, obviamente muito
conveniente para os seus intentos. No meio deste lamaçal de más intenções que
idealizam o crime perfeito e a avultada recompensa financeira, aparece um
astuto director de serviços da seguradora, Barton Keyes (um fabuloso Edward G.
Robinson), que instintivamente descobre que nem tudo o que parece é.
O filme
é admiravelmente contado, com uma magnífica fotografia preto e branco de John
F. Seitz, uma iluminação que sublinha a sordidez dos ambientes, e uma partitura
musical de Miklós Rózsa, daquelas que ficaram para a história.
Como
nota João Benard da Costa num texto sobre
filme, “Double Indemnity” implica três leituras. É o nome da
encruzilhada em que o corpo do marido de Barbara Stanwyck foi encontrado; é a
referencia ao prémio do seguro que caberá a Phyllis por tal acidente; é ainda a
inscrição da relação condenada em que os dois cúmplices se envolvem”. Esta
óbvia e intencional sobrecarga de significados oferece ao filme uma tensão
forte e obsessiva. Neste ambiente “negro” quase todas as personagens agem em
função de desprezíveis intenções, não só o casal que imagina e executa o crime,
mas a filha de Phyllis, o namorado desta, e quase todos os circundantes. O
ambiente é de tal maneira doentio que Barbara Stanwyck, convidada para
interpretar o papel principal, depois de ler o argumento o recusou, por o achar
demasiado ignóbil. Foi Billy Wilder quem a convenceu, em boa hora: “És um rato
ou uma actriz?”, ao que ela respondeu “quero ser uma actriz”. “Então aceita o
papel”, ela aceitou e triunfou em toda a linha.
Na verdade, a actriz tinha o
perfil indicado para este trabalho. Barbara Stanwyck atravessou todos os géneros,
do melodrama à comédia, do western ao policial, mas terá sido no “filme negro” que
melhor se identificou com figuras de “femme fatal” fria e calculista, mas de
certa complexidade. Em “Pagos a Dobrar”, quem nos diz que Phyllis não está
verdadeiramente interessada em Walter Neff? Recebeu quatro nomeações para o
Oscar de Melhor Actriz, e foi-lhe atribuído um Oscar de carreira, em 1982.
Parece
que a génese do filme não terá sido muito pacífica a nível de argumentistas.
James M. Cain, o romancista, que se terá baseado num acontecimento verídico,
ocorrido em 1920, e de que foi protagonista Ruth Snyder, não terá ficado muito
satisfeito com a versão, e Raymond Chandler, o argumentista, quase terá cortado
relações com Wilder, finda a rodagem. Diga-se que Chandler tem neste filme a
sua única aparição no cinema: uma pequena figuração de um homem a ler um livro,
enquanto Fred MacMurray desce uma escada
(aproximadamente aos 16 minutos de projecção).
Em
2007, o American Film Institute organizou um inquérito sobre “Greatest Movie of
All Time” e “Pagos a Dobrar” ficou em 29º lugar. Foi nomeado para sete Oscars,
não tendo ganho nenhum: Melhor Filme, Melhor Realizador, Melhor Actor, Melhor
Actriz, Melhor Argumento, Melhor Fotografia a preto e branco, Melhor Música e
Melhor Som.
PAGOS A DOBRAR
Título original: Double
Indemnity
Realização: Billy
Wilder (EUA, 1944); Argumento: Billy Wilder, Raymond Chandler, segundo romance
de James M. Cain; Produção: Buddy G. DeSylva, Joseph Sistrom; Música: Miklós
Rózsa; Fotografia (p/b): John F. Seitz;
Casting: Harvey Clermont; Direcção artística: Hans Dreier, Hal Pereira;
Decoração: Bertram C. Granger; Guarda-roupa:
Edith Head; Maquilhagem: Wally Westmore, Hollis Barnes, Robert Ewing,
Charles Gemora; Direcção de Produção: Al Trosin; Assistentes de realização:
Charles C. Coleman, Bill Sheehan; Departamento de arte: Jack Colconda, Jim
Cottrell, Paul Tranz; Som: Stanley Cooley, Walter Obers; Efeitos visuais:
Farciot Edouart; Companhia de produção: Paramount Pictures; Intérpretes: Fred MacMurray (Walter
Neff), Barbara Stanwyck (Phyllis Dietrichson), Edward G. Robinson (Barton
Keyes), Porter Hall (Mr. Jackson), Jean Heather (Lola Dietrichson), Tom Powers
(Mr. Dietrichson), Byron Barr (Nino Zachetti), Richard Gaines (Edward S.
Norton, Jr.), Fortunio Bonanova (Sam Garlopis), John Philliber (Joe Peters),
James Adamson, John Berry, Raymond Chandler (homem a ler um livro), Edmund Cobb,
Kernan Cripps, Betty Farrington, Bess Flowers, Miriam Franklin, Harold
Garrison, Eddie Hall, Teala Loring, George Magrill, Sam McDaniel, Billy
Mitchell, Clarence Muse, Constance Purdy, Dick Rush, Floyd Shackelford, Oscar
Smith, Douglas Spencer, etc. Duração: 107 minutos; Distribuição em
Portugal: Filmes Unimundos; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia
em Portugal: 24 de Agosto de 1945.
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