A DAMA DE XANGAI (1948)
Depois
de “O Mundo a Seus Pés” e “O 4º Mandamento”, que muitos consideram os títulos
mais pessoais de Orson Welles, outra das suas obras mais significativas é “A
Dama de Xangai”, rodada em 1948 para a Columbia Pictures. Diz a lenda, e as
informações do próprio Welles, que este policial, retirado de um romance menor
de Sherwood King ("If I Die Before I Wake"), se concretizou porque o
cineasta precisava de 25.000 dólares para ajudar a montar um espectáculo
musical na Broadway, "A Volta ao Mundo em 80 Dias", e os conseguiu
parcialmente. Como o espectáculo não se chegou a estrear, Welles perdeu essa
soma e ficou em dívida para com o produtor Harry Cohn, o homem forte da
Columbia. Para pagar a dívida, aceitou adaptar esta obra que seria interpretada
por Rita Hayworth, vedeta número um da Columbia e, nessa altura, ainda mulher
de Orson Welles, apesar de, por esses dias, correr já o processo de divórcio.
História,
portanto, complexa a da génese deste filme, mais uma obra maldita no percurso
de um cineasta genial, que considera só ter completado três ou quatro filmes -
todos os outros acabaram adulterados por produtores que o não compreendiam e
não toleravam com bons olhos as suas experiências estilísticas e a morosidade
da montagem.
Diga-se,
em boa verdade, que não devia ser fácil trabalhar com Welles. Ele próprio o
confessa, quando afirma em várias entrevistas suas, que para si uma montagem
nunca está terminada. De uma maneira ou de outra, “The Lady from Shanghai” foi
mais um filme que se estreou depois de ter sofrido uma montagem imposta pelo
produtor, e sobretudo depois de lhe terem colado uma banda sonora “estranha” -
que não é a original, portanto - e que exasperava particularmente o realizador,
que a considerava música para aventuras de Pluto ou filmes da casa Disney.
Mas
vamos ao início da história. Os tumultuosos amores de Welles e Rita Hayworth
atravessavam um mau momento, com processo em tribunal e tudo. Mas, a actriz
amava ainda Welles e este nunca deixou de se sentir apaixonado por ela. A frase
final desta obra dir-se-ia que se adapta por inteiro a este romance mal
resolvido. Harry Cohn, o produtor, que durante anos procurou afastar a sua
vedeta de estimação das garras desse “intelectual fatídico”, achou nessa altura
que seria certamente muito comercial juntar publicamente o casal litigante num
policial. E fez tudo para reunir Welles e Rita Hayworth nesta obra. Welles
começou por convocar a imprensa e levá-la a assistir a um crime de lesa imagem
da diva: perante os fotógrafos, Rita Hayworth aceitou cortar o seu belo cabelo,
que surgiria curto e louro em “The Lady from Shanghai”.
Depois,
alugou o iate de Errol Flynn, que o pilota por vezes, sem que ele apareça nas
imagens, e partiu para os mares do Sul, Acapulco e Sausalito, onde filmou
durante várias semanas sem dar novas ao estúdio. Quando chegou a Holywood, com
as bobines debaixo do braço, montou o filme e mostrou-o numa ante-estreia para
previsão da recepção do público. Os resultados foram catastróficos - ninguém
percebera a história, nem o próprio Harry Cohn, que ofereceu um prémio a quem
lha contasse direita. Mas Harry Cohn, apesar de tudo, tinha algum respeito por
Welles, que lhe pagava na mesma moeda. Welles compreendia o papel dos
produtores, mesmo daqueles que não percebiam nada de cinema, como era o declarado
caso de Harry Cohn. Já agora, um à parte divertido: conta-se que quando Harry
Cohn morreu, o seu enterro foi muito concorrido, o que Billy Wilder explicava,
com a ironia que lhe era peculiar: "Acontece, sempre que se dá ao povo
aquilo que ele tem vontade de ver..."
Mas no
caso de Rita Hayworth, o povo não gostava de a ver transformada e por terra na
derradeira sequência. Mulher fatal, sim, mas, mesmo assim, "deusa do
amor", mito romântico de uma Hollywood que se afeiçoara à imagem de
fábrica de sonhos. Welles, no entanto, filmara a sua amada com verdadeiro amor
na objectiva. Basta reter alguns planos admiráveis por onde evolui com a leveza
de uma sombra branca e a sensualidade refreada de uma felina pronta a atacar.
A
história é realmente um pouco complexa, mas não é nela que se encontra o
verdadeiro interesse e significado do filme. Como em quase todos os “filmes
negros” a intriga custa a acompanhar.
A
Orson Welles, vindo da traumatizante experiência de “It's All True”, obra
abortada entre o México e o Brasil, interessavam sobretudo as personagens que
se confrontam, o clima que se cria, as inovações técnicas e narrativas que ia
introduzindo no cinema. Esta história de tubarões que se entredevoram quando o
cheiro do sangue encharca as águas do oceano era uma história que tinha muito a
ver consigo. Ele próprio lhe introduz anotações obviamente pessoais, como a
referência a Fortaleza, e a própria metáfora dos tubarões.
Resumindo
e concluindo, que quando se começa a falar de Orson Welles a tendência é para
não parar mais, “A Dama de Xangai" acaba por ser um dos mais sentidos e
sinceros filmes de Welles, uma das obras onde põe mais de si próprio, onde
algumas das suas obsessões mais constantes, como os temas da culpabilidade e da
falsidade, melhor encontram ressonância e explanação. Temas que são igualmente
uma constante no universo peculiar do “filme negro”.
Um
filme com imagens absorventes de criatividade, de vigor, de brilho, uma das
mais fulgurantes aventuras do cinema que se queria moderno e inventivo.
Apaixonado pela estética da distanciação de Bertolt Brecht, que considerava o
teatro chinês aquele que melhor concretizava essa intenção, não será de
estranhar que as derradeiras sequências desta obra decorram precisamente
durante uma representação de teatro chinês - será aí que se descobrirá o
verdadeiro culpado, culpado que será justiçado numa admirável sequência de
espelhos múltiplos, onde a realidade se deforma, multiplica e estilhaça.
A DAMA DE XANGAI
Título original:
The Lady from Shanghai
Realização: Orson Welles (EUA, 1948); Argumento: Orson Welles, William
Castle, Charles Lederer e Fletcher
Markle (os três últimos não creditados), segundo romance de Sherwood King (If I Die Before I Wake); Música Original:
Heinz Roemheld e ainda Doris Fisher e
Allan Roberts (canção "Please Don't
Kiss Me") (não creditados); Fotografia (P/b): Charles Lawton Jr., Rudolph
Maté (não creditado), Joseph Walker
(não creditado); Montagem: Viola Lawrence; Direcção artística: Sturges Carne,
Stephen Goosson; Decoração: Wilbur Menefee, Herman N. Schoenbrun; Guarda Roupa:
Jean Louis; Maquilhagem: Clay Campbell, Helen Hunt, Robert J. Schiffer;
Assistentes de realização: Sam Nelson; Realizador da Segunda unidade: William
Castle; Som: Lodge Cunningham; Efeitos Especiais: Lawrence W. Butler; Produção:
William Castle, Harry Cohn, Orson Welles, Richard Wilson; Intérpretes: Rita Hayworth (Elsa "Rosalie" Bannister),
Orson Welles (Michael O'Hara), Everett Sloane (Arthur Bannister), Glenn Anders
(George Grisby), Ted de Corsia (Sidney Broome), Erskine Sanford (Juiz), Gus
Schilling (Goldie), Carl Frank (Procurador Público, Galloway), Louis Merrill
(Jake), Evelyn Ellis (Bessie), Harry Shannon (Taxista), William Alland, Jessie
Arnold, Jack Baxley, Steve Benton, Vernon Cansino, Doris Chan, George Chirello,
Wong Show Chong, Edward Coke, Peter Cusanelli, Al Eben, Edythe Elliott, John
Elliott, Keenan Elliott, Joseph Granby, Robert Gray, Alvin Hammer, Maynard
Holmes, Tiny Jones, Byron Kane, Milton Kibbee, Preston Lee, Grace Lem, Billy
Louie, Charles Meakin, Philip Morris, Sam Nelson, Mary Newton, Joseph Palmer,
Edward Peil Sr., Gerald Pierce, Joe Recht, Mabel Smaney, Harry Strang, Norman
Thomson, Philip Van Zandt, Dorothy Vaughan, Richard Wilson, Artarne Wong, Jean
Wong, etc. Rodagem:
nos Estúdios da Columbia e exteriores no México, San Francisco, a bordo de
"Zacca", o iate de Errol Flynn; Duração:
87 minutos; Estreia: Abril de 1948 em Inglaterra e Maio de 1948 nos EUA;; Distribuição Internacional: Columbia
Pictures; Distribuição em Portugal: Radio Filmes (Portugal);Edição vídeo: Costa
do Castelo.
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